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Marcelo Coelho

Sentimentalismo relinchante

O filme "Cavalo de Guerra", do cineasta Steven Spielberg, é um desastre estético e moral

Todo mundo conhece (a coisa começou em 1930, mais ou menos) aquele personagem meio idiotado, amigo do herói do filme, que desde a primeira cena já está marcado para morrer.

Ele ri bastante, é ingênuo, é feliz e não fará falta nenhuma para o desenvolvimento da trama. Anuncia algum sonho banal para o futuro: "Quando eu voltar da guerra, quero cuidar do meu posto de gasolina"; "quando sairmos desta maldita ilha, vou me dedicar ao plantio de alfaces".

Seu sonho morrerá com ele na primeira carga da cavalaria inimiga ou no segundo ataque de tubarões voadores. Não quero contar muito de "Cavalo de Guerra", o mais recente filme de Spielberg, mas, se estiver contando, acho que não estrago a surpresa de ninguém. A razão é que não há surpresas nesse filme.

Ou melhor, há sim. É que, além do amigo idiotado do herói, Spielberg introduziu uma inovação bizarra nessa história de um cavalo atravessando os campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.

Ele criou o amigo do cavalo. Que é outro cavalo, evidentemente -e ganha um doce quem adivinhar quais as suas chances de sobrevivência até o final do filme.

Seria uma perfeita paródia dos clichês hollywoodianos, se a intenção de comover não fosse tão explícita. A música é um clichê do começo ao fim, e o fim é um clichê à parte, com vermelhidões de crepúsculo, no modelo de "...E o Vento Levou": um céu de "technicolor" contra o qual se recortam as silhuetas dos heróis da história, cavalo inclusive. Faltou um relincho de triunfo, para deixar a plateia definitivamente de quatro.

"Cavalo de Guerra" constitui, além do mais, uma verdadeira aberração moral. Verdade que os massacres de 1914-1918 já se perderam um bocado no tempo.

Mas contar sentimentalmente as desventuras de um cavalo nas trincheiras, enquanto seres humanos morriam como moscas, seria o equivalente a um filme que mostrasse a comovente sobrevivência de um hamster num campo de extermínio nazista. Tento matizar, em todo caso, esse julgamento. Nos depoimentos de antigos soldados da Primeira Guerra, fala-se de muita compaixão pela sorte dos animais.

Cavalos foram ainda muito importantes naquele conflito: transportavam alimentos e munição para as tropas. Era frequente entrarem em pânico no meio das bombas e que agonizassem, mutilados, ao lado das vítimas humanas.

A piedade dos soldados se justifica, acho, pelo fato de que os animais nem mesmo sabiam o que estava acontecendo; e não tinham escolhido, é claro, integrar os batalhões de combatentes.

Dessa dupla inocência não participavam os soldados, por mais iludidos que estivessem ao se alistar.

Haveria sentido, então, no tema do filme. Não seria propriamente um clichê, embora o recurso já tenha sido utilizado muitas vezes (desde Swift, por exemplo): mostra-se a "humanidade" de um cavalo em meio a uma guerra humana e, por isso mesmo, bestial.

O foco de "Cavalo de Guerra" não seria, por si só, escandaloso e ilegítimo. Mas a sentimentalidade cavalar de Spielberg, se não for simples exemplo de que o diretor está gagá, exigiria outra explicação.

Claro, Spielberg muitas vezes foi sentimental, apelativo, o que quisermos. Mas não era, hum, burro; e não estou entre seus inimigos jurados.

Em "Cavalo de Guerra", talvez exista um argumento oculto capaz, não de salvar, mas de explicar o seu desastre estético e moral.

A tragédia de 1914-1918 marcou a passagem de um modelo de guerra ainda galante, de cavalarianos com a espada em punho, para um conflito principalmente tecnológico, baseado em tanques, aviões e armas químicas.

O verdadeiro antagonista do cavalo, no filme, é o canhão, a metralhadora, o tanque de guerra.

Esse domínio "desumanizador" da tecnologia é também o que se vê na própria indústria cinematográfica, na qual o que conta são os efeitos digitais e o virtuosismo milimétrico das tomadas.

Diante de um cinema tão perfeito tecnicamente, Spielberg talvez queira recuperar o "sentido humano" da história. Mas, no seu vocabulário, isso significa mais sentimentalismo. Que o sentimentalismo privilegie as emoções em torno de um cavalo é sintoma, sem dúvida, que da humanidade hollywoodiana não resta mais nada a esperar.

coelhofsp@uol.com.br

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Contardo Calligaris

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