Em carta que atrasou, Sartre alertou que rejeitaria Nobel
Escritor francês fez aviso depois de já ter sido escolhido por Academia Sueca
Existência e detalhes da correspondência vêm à tona mais de 50 anos após a maior saia justa da história da premiação
Uma carta que demorou demais a chegar levou à maior saia justa da história do Nobel de literatura. Vencedor em 1964, o filósofo francês Jean-Paul Sartre, morto aos 74, em 1980, pedia na correspondência que nem fosse cotado para o prêmio, advertindo a Academia Sueca que não o aceitaria jamais.
Mas a mensagem, escrita em 14 de outubro daquele ano em Paris, chegou tarde demais a Estocolmo, onde o júri já havia escolhido Sartre vencedor em 17 de setembro, exaltando sua obra "rica em ideias e cheia do espírito da liberdade e da busca pela verdade".
Semanas depois, Sartre foi anunciado o vencedor do prêmio e recusou a honraria em seguida, alegando que "um escritor que adota posições políticas, sociais e literárias deve se basear em seus próprios meios apenas, ou seja, a palavra escrita" e que "os prêmios expõem os leitores a uma pressão indesejável".
A existência dessa carta e detalhes do texto de Sartre só vieram à tona agora, em reportagem do diário sueco "Svenska Dagbladet", porque a Academia Sueca, responsável pelo Nobel, mantém sigilo de 50 anos sobre os bastidores de todas as decisões.
Sartre tentou entrar em contato com os membros da Academia quando soube pelo jornal "Le Figaro" que estava entre os nomes cotados. Antes do Nobel, ele também havia recusado a Legião de Honra, importante condecoração do governo francês, e tampouco quis entrar para o prestigioso Collège de France.
Mas a recusa do Nobel, que naquele ano teve outros 76 escritores cotados, acabou se tornando o caso mais famoso e surpreendente de alguém que diz não à Academia Sueca.
Num texto publicado pouco depois do episódio no jornal "Le Monde", Sartre lamentou o fato de sua decisão ter se tornado um "escândalo".
"Um prêmio foi oferecido, e eu recusei", escreveu Sartre. "Não sabia que essa decisão era tomada sem o conhecimento do vencedor, e acreditava ainda estar em tempo de evitar o ocorrido."
Sartre, no entanto, esclareceu que sua recusa não era uma crítica ao prêmio Nobel nem a vencedores anteriores. O existencialista resumiu o assunto dizendo que um escritor não pode se tornar uma "instituição" ou se prestar, com o seu prêmio, a legitimar uma instituição qualquer.
"A única batalha possível no front cultural hoje é pela coexistência pacífica das culturas do Ocidente e do Oriente", escreveu o autor de "A Náusea". "Mas esse confronto deve se dar apenas entre homens e culturas, sem a interferência de instituições."
Ele também lamentou o fato de ter de abrir mão do prêmio em dinheiro oferecido pela Academia Sueca, hoje cerca de R$ 2,7 milhões. Mas embora não tenha recebido o Nobel, acabou aceitando a quantia em dinheiro.