A mãe do selfie
Retrospectiva de Frida Kahlo que abre hoje em SP revela como a artista mexicana foi uma pioneira da representação feminina e antecipou a era do Instagram
Frida Kahlo é uma presença histérica na história da arte. Muito além de sua obra, a imagem da artista mexicana celebrizada em seus autorretratos com olhar austero, emoldurado por suas espessas sobrancelhas, tem a força inabalável de uma marca pop.
Mas, antes de se metamorfosear em algo tão poderoso quanto a lata de sopa Campbell's de Andy Warhol, a surrealista que o jornal "The New York Times" já chamou de "mãe do selfie" era vista como ninguém mais que a mulher de Diego Rivera, muralista que acabou plasmando uma imagem folclorizada do México no plano global.
Fora da sombra do marido, Frida, que morreu aos 47, em 1954, acabou se revelando mais poderosa do que ele. Ela já foi tema de filme de Hollywood, inspirou incontáveis coleções de moda, da Givenchy à grife de Jean Paul Gaultier, e virou um dos símbolos mais fortes da causa feminista.
É pelo prisma do feminismo –e do pioneirismo de Frida ao se retratar dividida entre a dor e a força– que a vida da artista é revista numa exposição a partir deste domingo (27) no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo –a mostra vai depois a Rio e Brasília.
Além de 30 obras de Frida, entre pinturas e desenhos, peças de mulheres surrealistas que viveram no México, como a britânica Leonora Carrington e a espanhola Remedios Varo, estão na mostra paulistana, sendo Frida o maior astro dessa constelação.
Seu magnetismo, aliás, é indissociável da identidade dupla que ela cultivou ao longo da vida –algo entre a mulher valente que encarou as traições do marido e a moça frágil destroçada pelo acidente de bonde que sofreu aos 18 anos, quando uma barra de ferro atravessou seu corpo.
Esses dois lados de Frida aparecem na mostra, em especial num desenho em que Rivera a retrata nua como uma musa romântica e um autorretrato em que ela se representa como um corpo ferido ao lado de um natimorto, alusão a um aborto que sofreu.
"Há um contraste entre a forma que ela se vê e a maneira de Diego de retratar a mulher", diz Teresa Arcq, que organiza a exposição. "Frida aparece cheia de cicatrizes. É uma ruptura total entre as esferas pública e privada. Ela abriu o corpo e mostrou suas feridas. Foi uma pioneira da representação feminina."
ÍMÃ DE GELADEIRA
Não por acaso, um terço das obras de Frida no Tomie Ohtake são autorretratos. Hábil em construir sua imagem, ela parece ter antecipado a febre da arte contemporânea de alçar o autor e seus dilemas ao posto de protagonista da obra.
Frida, aliás, fez isso ao mesmo tempo em que se pintou como um paradigma da mexicanidade. Em sintonia com o projeto de resgate da identidade de seu país liderado pelo marido, Frida surge em suas telas vestindo trajes típicos de Oaxaca, região do sul do país que conservara o matriarcado como sua estrutura social.
"Ela moldou sua personalidade até virar um estandarte", diz Arcq. "Era como um camaleão, chamava a atenção de maneira espetacular."
Numa das telas da mostra, Frida está vestida de noiva e tem na testa um pequeno retrato do marido, sintetizando seu amor obsessivo por ele ao mesmo tempo em que se coloca no centro das atenções.
Outro quadro, talvez a obra-prima da exposição, traz Frida em trajes típicos rodeada de macacos, um símbolo do erotismo em seu trabalho.
Mas a inclinação natural de Frida para construir imagens tem raízes anteriores ao casamento. Filha de um fotógrafo, ela cresceu vendo fotografar toda a família em sessões que duravam o dia todo, com várias trocas de roupa e cenário.
"É muito espontânea a forma como o autorretrato entra em sua obra", diz Cristina Kahlo, sobrinha-neta da artista, num passeio pelas casas modernistas que o arquiteto Juan O'Gorman construiu para Frida e Rivera na capital mexicana. "Ela sempre foi uma grande modelo."
Tanto que posou não só para as próprias telas, mas para a lente de fotógrafos como Lola Alvarez Bravo, Gisèle Freund e Nickolas Muray.
Fotógrafo da "Vanity Fair" e da "Harper's Bazaar", Muray teve um caso com Frida e fez alguns de seus retratos mais marcantes. Quatro deles estão na mostra paulistana, entre eles uma imagem da artista com um xale vermelho, que Diego Rivera comparou, pela harmonia da composição, a uma tela do renascentista Piero della Francesca.
Em autorretratos ou vista por outros, Frida mantém seu magnetismo de ímã de geladeira. "Enquanto a obra de Diego Rivera está muito vinculada a um período histórico, a obra dela é bem mais pessoal", diz Arcq. "É talvez por isso que ela seja capaz de atingir o mundo todo."