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Marcelo Coelho

Quando o cinema era "real"

"O Artista" expõe a desgraça do antigo galã, esquecido com a chegada do cinema falado

A Academia de Hollywood gosta de contrariar, por vezes, sua preferência pelos "filmões" ("Titanic", "O Poderoso Chefão", "A Lista de Schindler" etc.). Dependendo do ano, há chances de uma produção menos grandiosa, e até com alguma inovação, levar o prêmio de melhor filme.

"O Artista", de Michel Hazanavicius, talvez tenha ousadias demais para concorrer com "Cavalo de Guerra", de Spielberg, e com outros candidatos a melhor filme deste ano.

Como se sabe, é um filme praticamente mudo do começo ao fim, imitando -até no uso dos letreiros- o cinema dos anos 1920. Trata-se, o que é incomum, de uma produção franco-americana. Não tem atores famosos no elenco.

Encerrado o capítulo das ousadias, que não são poucas, "O Artista" conta apenas uma clara e simpática história de amor intrépido e de orgulho punido. E corresponde sobretudo a um velho hábito hollywoodiano, "oscarizável" como poucos: o das homenagens ao próprio cinema.

No caso, a homenagem é em grau duplo, porque "O Artista" se inspira principalmente em "Cantando na Chuva" e "Crepúsculo dos Deuses", dois filmes que, por sua vez, já eram sobre o cinema; mais especificamente, sobre a passagem do cinema mudo para o cinema falado.

Ao contrário desses dois filmes americanos, que afinal eram falados, a delicadeza de Michel Hazanavicius, diretor e roteirista do atual concorrente ao Oscar, foi a de fazer uma homenagem ao cinema mudo que fosse muda ela também.

"O Artista" expõe (até um pouco longamente, a meu ver) a desgraça do antigo galã, esquecido com a chegada do cinema falado. Mas leva ao extremo sua simpatia pelo personagem, ressuscitando, "só para ele", o mundo em que ele se sentia bem.

Mais do que uma referência ao mundo do cinema, o filme celebra a capacidade que o cinema tem de "criar o mundo" -a ponto de, num momento brilhante de metalinguagem, surgir como pesadelo, como coisa irreal, um cotidiano onde subitamente tudo se tornasse audível.

O exercício de fazer um filme à moda dos anos 1920, com citações em penca até na trilha musical, corre o risco de maravilhar o espectador no começo, e cansá-lo da metade em diante.

Mas aos poucos a ideia da "recriação do mundo" pelo cinema se fortalece. Passamos a acreditar num tipo de personagem, num gênero de amor, numa espécie de comportamento edificante, que só faziam sentido nos tempos de Rodolfo Valentino. Ou será que não? O elogio do amor eterno, que vai do cachorrinho e do motorista ao coração da mocinha, é também metáfora de outra fidelidade -a fidelidade ao cinema. E quando o ator decadente, em crise alcoólica, incendeia rolos e mais rolos de celuloide, talvez o lado mais francês de "O Artista" se revele.

O filme faz o discurso fúnebre da filmagem em película, com atores de carne e osso, face ao advento das câmeras digitais e das animações.

A cinefilia, paixão francesa por excelência, já foi ato de vanguarda, com a nouvelle vague dos anos 60. Era uma vanguarda esquisita, por gostar do cinema americano; mas era vanguarda.

A cinefilia ganhou o mundo, pelas mãos americanas, com os remakes, citações e pastiches dos anos 1980. A voga "retrô" é agora não mais apenas celebrada, mas "vivida" em "O Artista", como se pudéssemos entrar dentro da tela, e não mais sair de lá, enquanto a realidade, esta, a cada dia se torna mais digital, mais cheia de efeitos, mais inconfiável do que nunca.

PS - No artigo de 7/12, sobre o livro "Confie em Mim, Eu sou o Dr. Ozzy", referi-me aos sustos e doenças que o roqueiro Ozzy Osbourne experimentou, em função de seu abuso de drogas. Ele escreve que chegou a "receber positivo num exame de HIV (meu sistema imunológico havia sido derrubado pela bebida e pela cocaína, não pelo vírus)." Reproduzindo essa ideia, escrevi: "Ele chegou a dar positivo num exame de HIV, tão baixa a sua imunidade".

Sem ser médico, não me dei conta de que com isso poderia dar a impressão, a soropositivos ou não, de que a presença de uma simples queda na imunidade é sintoma que se confunda com a presença do vírus da Aids. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa -e se Ozzy deu "positivo" para vírus de Aids, tratava-se de equívoco no diagnóstico, como o próprio roqueiro diz no livro.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris

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