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Análise

Singularidades criaram falsa definição da obra e da pessoa

FRANCESCA ANGIOLILLO
EDITORA-ADJUNTA DA “ILUSTRADA”

"Eu Sou uma Pergunta", "Esboço para um Possível Retrato", "Uma História que se Conta". Estes são apenas alguns dos títulos que revolvem ao redor da vida e da obra da autora brasileira nascida ucraniana Clarice Lispector.

Com diferentes objetivos e orientações, todos apontam para uma certa impossibilidade de apreensão que se colou à escritora como um epíteto: Clarice, a enigmática.

Até "Clarice,", de Benjamin Moser, tida como sua mais completa biografia, não ousa se fechar em torno de seu nome: a vírgula que (não) encerra o título ecoa a dificuldade de definir essa que se tornou a mais mítica das autoras de nossa língua.

Houve mesmo em torno da pessoa de Clarice essa aura.

O sobrenome que foi tomado por pseudônimo, na aurora de sua recepção crítica; o sotaque (na verdade um problema fonoaudiológico que fazia carregados seus erres); a condição de estrangeira (foi uma sina se naturalizar, mesmo se, como dizia, seus pés nunca tocaram o solo ucraniano antes do brasileiro, pois chegou bebê de colo).

Singularidades tão gritantes se cristalizaram como uma fácil e ilusória definição da pessoa e da escritora.

Os pastiches de sua voz autoral proliferam -em falsas citações na internet (até versos melosos há por aí, atribuídos a ela, que destruiu seus poemas ao não receber o estímulo de Manuel Bandeira) e em textos acadêmicos cuja sintaxe tenta emular, por vício ou por desígnio, a dicção particular de sua literatura.

Essa contaminação cruzada nem sempre fez bem à compreensão de Clarice.

Em particular no âmbito da academia, a não separação entre estudioso e estudado contribuiu a alimentar a mística que ela mesma tentou negar ("meu mistério é não ter mistério") -em vão.

Que um professor português de ar circunspecto tenha, antes de escrever sobre ela, copiado de cabo a rabo um de seus romances mais densos poderia soar como mais um expediente extremo e até cômico dentro dessa linha de apropriações.

Para Carlos Mendes de Sousa, porém, o recurso parece ter funcionado como um exorcismo salutar: repetir a sua voz não para dela se ensurdecer, mas para baixar-lhe o volume e, assim, ouvi-la. Posta Clarice de lado, eis a liberdade de tê-la como tema.

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