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Marcelo Coelho

O resto é risada

É possível tirar muito prazer estético, entretenimento e emoção de um drama de Shakespeare

Respeitável público! Já transcorridos mais de 60 minutos de nosso espetáculo, temos a honra de apresentar agora... a mais profunda, complexa e importante peça do teatro universal. Senhoras e senhores, preparem-se para assistir a "Hamlet", de William Shakespeare!

A plateia respira fundo e se segura nas poltronas. Nada mais natural. É possível tirar muito prazer estético, entretenimento e emoção de um drama de Shakespeare, mas temos de admitir que o senso do dever cultural joga um papel decisivo nessa hora.

Sem desgostar do que estava vendo, lembro-me de ter saído antes do quinto ato numa montagem brasileira -séria, compenetrada, longuíssima- do famoso texto.

Não é coisa que aconteça só no Brasil. Assisti a uma apresentação histórica do "Parsifal", de Wagner, em Veneza, com o maestro Giuseppe Sinopoli. A ópera começava às sete da noite, e teria dois intervalos.

Ai de quem não tivesse jantado antes do espetáculo. Aliás, eu tinha visto o próprio maestro, pouco tempo antes, comendo uma pizza com a família numa pracinha ali perto.

O primeiro intervalo foi aí pelas nove e meia. Às dez, quando as andanças de Parsifal recomeçaram com suas tubas e trombones, a plateia já tinha diminuído uns 40%.

O segundo intervalo foi às onze e meia, e a salvação final do rei Amfortas começou para lá da meia-noite. Foi presenciada por apenas 10% do público do início. Os demais foram, provavelmente, entregar-se a libações outras que as oferecidas no cálice wagneriano do Graal.

Com Shakespeare ocorre algo parecido, e a culpa não é só do público. Também atores e diretores se sentem diante de uma soleníssima missão. Lá vai um Otelo de botas, recém-saído da última novela da Globo, glosar, com o pescoço entalado, ciúmes de outro jaez.

Logo depois de um anúncio de planos de saúde para aposentados, o rei Lear desafia relâmpagos e tormentas na charneca. Gabriela Cravo e Canela (ou será Dona Flor?) empalidece, perde as curvas num vestidão de brechó, e sai à cata de nenhum marido, coroada de rosmaninhos; é a triste Ofélia.

Universal, Shakespeare? Certamente. Mas tão universal que não o sentimos convincente quase nunca em nosso próprio ambiente doméstico. O problema existe também nos Estados Unidos, se é que não na própria Inglaterra. Al Pacino, atuando e dirigindo no documentário "Ricardo 3º", trata de suas dificuldades ao encenar o texto clássico.

Resolveu a questão brilhantemente, a meu ver, fazendo uma mistura entre teatro filmado e programa didático. Apresentar Shakespeare talvez exija, atualmente, explicá-lo ao mesmo tempo.

Voltemos então a "Hamlet". Sim, o respeitável público não ficará sem assistir ao que tinha de assistir querendo ou não.

A boa notícia é que estamos no Espaço Parlapatões, e a peça em cena se chama "ppp@WllmShkspr.Br", adaptação de uma comédia americana que pretende, com muita ironia, resolver o "problema Shakespeare" de uma vez por todas.

Ou seja, as obras integrais do bardo, incluindo textos apócrifos e sonetos, serão condensadas no espaço de um único espetáculo.

O texto de Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer chega ao limite do desrespeito, mas sem perder a ternura jamais, no tratamento das peças de Shakespeare.

Levada ao Brasil pelos Parlapatões há bastante tempo, retorna agora em pleno vigor, com temporada prorrogada até maio.

Hugo Possolo faz tudo numa espécie de graça quase infantil. É como se uma criança prodígio encenasse Shakespeare, auxiliada pelos supostos adultos da companhia, Raul Barreto e Alexandre Bamba.

Há poesia em toda a brincadeira. Para explicar as comédias de Shakespeare em tempo recorde, o grupo recorre a uma mesinha cheia de objetos díspares, uma bota de borracha, um cabide com calcinhas, um porquinho de brinquedo.

À parte o mau gosto de usar um cinzeiro para representar o judeu Shylock, tudo dá certo quando se trata de narrar, em ritmo de desenho animado, as cansativas trocas de identidade que caracterizam tantas das peças cômicas do autor.

Hamlet? Ser ou não ser? Oh, please... Os Parlapatões brincam com esse monólogo -e apresentam uma outra fala de Hamlet, não ainda contaminada pelo fetiche.

A beleza das palavras toma conta do teatro; a paródia cessa; tudo parece ao mesmo tempo mais escuro e luminoso. A plateia ouve em silêncio. O resto é risada.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA: Contardo Calligaris

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