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Crítica romance Livro faz leitor sentir nó na garganta No romance "O Céu dos Suicidas", Ricardo Lísias expande tendência de desdobrar histórias O episódico ganha uma relevância maior e transforma o romance numa gama de possibilidades, mesmo que truncadas ALFREDO MONTEESPECIAL PARA A FOLHA Na nota de agradecimentos que fecha "O Livro dos Mandarins", Ricardo Lísias menciona o suicídio de um grande amigo, André. Em "O Céu dos Suicidas", o narrador chamado Ricardo Lísias desmorona após o amigo André enforcar-se, resvalando num surto no qual se misturam insônia, raiva, angústia, culpa (expulsou de casa o amigo, que começara a se cortar com um canivete) e uma "saudade de tudo", de sua vida anterior à condição de um "especialista em coleções" (suas coleções pessoais haviam sido descartadas e só restara essa expertise). Durante a crise, ele tenta refazer passos da vida de André, solucionar um mistério familiar indo ao Líbano, experiência depois da qual procura religiosos e se submete a tratamento psiquiátrico... Do final de "O Livro dos Mandarins", um dos raros romances contemporâneos que podemos qualificar de fabulosos, ficou também a expectativa que pesa sobre "O Céu dos Suicidas" enquanto livro imediatamente seguinte: depois de tanta exuberância narrativa, o que viria? Dir-se-ia que Lísias voltou ao estilo econômico, em que contenção e uma linguagem no limite conviviam, de suas novelas (reunidas em "Anna O.") e de seus pequenos romances "Cobertor de Estrelas" e "Duas Praças". Não. Apesar da moldura que adotou -88 micro-capítulos, praticamente no mesmo formato- e de se voltar para os mesmos impasses entre racionalização extrema e desagregação, até mesmo da linguagem, "O Céu dos Suicidas" não é uma novela disfarçada de romance. Ele expande uma tendência do universo de Lísias, o escritor, o qual sempre gostou de desdobrar suas histórias e criar incidentes que pareciam nada ter a ver com o relato central. No novo livro, o episódico (picuinhas familiares, viagem ao Líbano) ganha uma relevância maior e transforma o romance numa gama de possibilidades, mesmo que truncadas, resistindo a fechar a conta, a formar uma totalidade narrativa que dê sentido à busca de Lísias, o personagem, atravessando a corda bamba entre o caos e uma vida domesticada. O leitor talvez esteja se perguntando, como hoje é inevitável, o que pode ter "O Céu dos Suicidas" de biográfico. Eu não sei e não me importa. Pois a dor que deveras sente Lísias, o escritor, foi virtuosisticamente resolvida no "chega a fingir que é dor": um romance tão elegante, tão irônico, que faz o leitor sentir o proverbial nó na garganta. Só por isso, não importa como venha a morrer (que seja em data distante), ele merece o céu dos escritores. ALFREDO MONTE, doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, é professor e criador do site Monte de Leituras (armonte.wordpress.com).
O CÉU DOS SUICIDAS
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