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Revista Serafina

Neo mpb

Do camelô no Centrão à livraria da elite, como funciona a geração que faz hoje a nova música popular brasileira

MARCUS PRETO
DE SÃO PAULO

"O disco da Tulipa já vendeu mais do que os últimos de Caetano e Gil. O do Criolo está quase superando o novo da Madonna."

As contas são de João Paulo da Silva Bueno, coordenador da categoria de música da Livraria Cultura. Responsável pelas compras de CDs, vinis e DVDs musicais da rede de lojas, frequentada quase que exclusivamente pela classe média e alta paulistana, ele diz que não pode falar em números.

Mas reitera que esses músicos e outros, como Karina Buhr e Céu, vivem entrando no top 10 da loja. Discos deles não podem faltar nas gôndolas porque são procurados quase todo dia.

Muitos desses nomes saem mais do que artista internacional consagrado.

"A gente ouve muito o que o cliente pede. E vamos atrás do cara. Chegou um momento em que começaram a pedir Thiago Pethit. 'Mas quem diabos é Thiago Pethit?', eu perguntava. Descobrimos o telefone dele e compramos os discos direto, sem intermediários. O mesmo aconteceu depois com o Romulo Fróes, o Bixiga 70, o Gui Amabis e os próprios Criolo e Tulipa."

FAMOSO QUEM?

"Tulipa? É banda internacional? Esse eu acho que não tem não. Mas tem um monte de seleção de música black: o que não falta é crioulo", diz Wanderley dos Santos, dono de uma banca de CDs piratas na rua Barão de Itapetininga.

Apesar de o mercado de piratas do centro de São Paulo estar agora dominado por vídeos pornô, Wanderley continua vendendo CDs. Faz isso há três anos. E, explica, agora o que vende não são os álbuns completos, mas coletâneas em mp3 do tipo "150 sucessos de...".

"O brasileiro que está vendendo mais é esse da Marisa Monte", aponta para um "50 hits - incluindo a música da [novela] 'Avenida Brasil'". "Mas Zé Ramalho e Roberto Carlos sempre têm saída, nem precisa tocar na novela."

A reportagem mostrou ao camelô uma lista com outros nomes apontados como bons vendedores pela Cultura.

"Tenho nada disso não."

É isso mesmo. Os tempos são contraditórios para quem faz a nova música do Brasil. Um artista pode "acontecer" -fazer música e viver dela- mesmo que ninguém fora de seu segmento se dê conta da existência dele.

"Em vez de 'música de massa', aquela coisa definitiva e pós-industrial, hoje temos a 'música da maioria', em que o ouvinte comum pode se inserir em muitos momentos -mas já não mais em absolutamente todos eles, como antes. Esta é a diferença: a maioria é flutuante e volátil e não mais um território conquistado e defendido, dominado, como era a massa", diz Pena Schmidt, ex-executivo e produtor de gravadoras multinacionais que atualmente comanda a programação de shows do Auditório Ibirapuera.

"Na cultura de massa, só há lugar para o vencedor. Por isso o espanto que ainda causam todos estes segundos, terceiros e quartos lugares que estão em evidência mas que não são 'unanimidades'. É pirante para quem acredita em marketing como era antigamente, aquela coisa de 'satisfazer os desejos do consumidor'. Não são mais 'consumidores', nem 'segmento' e nem 'alvo'. Somos apenas público e artistas, uma velha amizade colorida."

A transformação começou no início dos anos 2000. As facilidades de gravar um disco "em casa" aumentavam na mesma velocidade em que o poder de fogo da indústria fonográfica caía. Na impossibilidade de construir uma carreira livre e autoral dentro do esquema das gravadoras, artistas saíram em busca de inventar os próprios métodos.

COOPERATIVA

Muitas reportagens em segundos cadernos já foram feitas desde então sobre esse caminhar -todas apontando a lógica cooperativa montada pelos músicos envolvidos.

Identificou-se uma conjunção de artistas que se ajudava, que compartilhava mão de obra em gravações, que tocava junto -mesmo que seus trabalhos não tivessem qualquer semelhança estética.

"É difícil criar uma categoria para esses artistas. Alguém vai sempre reclamar de nomeações como 'a cena' ou 'a geração'", diz Alexandre Youssef, dono do Studio SP, casa onde todos os nomes fotografados para estas páginas já se apresentaram. "Mas todo mundo concorda que a preocupação principal é criar público. Só isso os torna autossustentáveis e possibilita que possam viver da arte. Antes deles, isso era inédito no Brasil."

Segundo Youssef, até final de 2005, os shows desses artistas eram frequentados basicamente pelos próprios e a plateia dificilmente passava de 30 gatos pingados. O público começou a descobri-los no ano seguinte.

"Alguns já conseguem viver de música. Criaram uma lógica, fazendo shows próprios ou discotecando nos dos outros e, no fim do mês, conseguem pagar as contas. Outros vivem só dos shows. Mas a grande maioria continua com o mesmo tamanho que tinham no começo. E tem gente que ainda nem entendeu o processo", diz. "Por outro lado, há os que já estão rompendo as fronteiras entre o independente e o mainstream, como Céu, Criolo e Emicida. Conseguem ser bastante populares e continuar à parte da indústria."

No começo da década passada, a maior parte dos ditos "artistas independentes" ostentavam esse rótulo porque era o que havia para eles - nunca por opção.

Estavam, na verdade, à espera de uma gravadora que os descobrisse. Agora, esse "ser popular à parte da indústria" a que Youssef se refere é a principal meta de muitos deles. E há quem finque o pé em não se vincular, nem minimamente, ao esquema industrial à moda antiga.

"Tentamos de tudo para distribuir o disco do Criolo, mas não conseguimos - nem nós, nem nenhuma outra gravadora", diz João Augusto, dono da relativamente pequena Deck Disc, gravadora que lançou todos os trabalhos da roqueira Pitty.

Augusto foi executivo em multinacionais como PolyGram (atual Universal) e EMI e, entre os anos 1980 e 2000, produziu Marisa Monte, Legião Urbana, Mamonas Assassinas, Erasmo Carlos e Los Hermanos, entre outros.

Na Deck, trabalha em esquema de parceria com os artistas. Foi sua gravadora que distribuiu recentemente os segundos álbuns da banda cuiabana Vanguart e da cantora baiana Márcia Castro - ambos pescados na cena independente.

Conta que tentou fazer o mesmo com Mallu Magalhães, quando ela surgiu, há quase cinco anos. "Hoje, pelo que sabemos, Mallu trabalha com inteira liberdade e louvo que a [multinacional que lança seus discos] Sony seja paciente - coisa rara na indústria atual."

"SHIMBALAIÊ"

Os olhos da grande indústria, portanto, estão atentos ao cenário em que transitam nomes que o camelô dos CDs piratas jamais vai conhecer.

De acordo com Marcelo Soares, diretor-geral da gravadora Som Livre, é quase impossível que um artista com algum potencial voe abaixo do radar da indústria por muito tempo, já que a maioria é detectada pela imprensa ou recomendada por algum artista já estabelecido.

"A parte difícil é identificar de antemão em qual, no meio desses, vale a pena apostar. Há casos em que a gravadora não sabe o que fazer mas também há casos em que não existe muito a fazer, o caminho é espontâneo, e o grande papel da gravadora passa a ser dar suporte para espaços que o próprio artista abre", afirma.

Soares usa como exemplo a cantora Maria Gadú. Desde que seu primeiro álbum foi lançado, em 2009, e a canção "Shimbalaiê" explodiu, ela se tornou uma das maiores vendedoras de disco do país. Não por acaso, ela é a única da nova geração com uma coletânea na barraquinha pirata de Wanderley dos Santos.

"Uma coisa que ouvi muitas vezes é que o sucesso da Maria Gadú trouxe uma onda de otimismo para os novos artistas e para o mercado como um todo. Por mais que seja uma exceção, é razoável imaginar que outras exceções possam vir."

GABY DO PARÁ

A próxima "exceção" aguardada com ansiedade pela gravadora de Soares é a paraense Gaby Amarantos.

Cantora da cena tecnobrega de Belém, ela desponta como o próximo estouro nacional mais provável.

Depois z de um clipe bem recebido pela cena independente ("Xirley"), ela acaba de emplacar a irresistível "Ex Mai Love" na abertura de "Cheias de Charme", novela das sete na Globo.

Seu disco, "Treme", foi gravado de maneira independente, mas vai ser lançado no mês que vem pela Som Livre.

"Gaby tem uma semelhança com o Criolo porque também segue seu caminho pessoal independente de tendências e se beneficia da crescente perda de preconceitos musicais que o país experimenta nos últimos anos", diz o executivo.

"Exatamente por isso, não creio que seja um modelo a ser seguido. Claro que podem surgir outros artistas na mesma direção, mas não acredito que possa ser replicado se a origem artística não for autêntica."

Estouros tendem a ser, portanto, cada vez mais raros. E se o mundo começasse nos moldes atuais?

Será que não teríamos artistas que unificassem, com suas canções, o inconsciente de todo o país, como fizeram, no passado, Roberto Carlos, Rita Lee, Caetano Veloso, Odair José, Tom Jobim, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Chico Buarque?

"Os artistas se renovam muito rapidamente hoje. A internet faz as camadas de popularidade serem muito mais maleáveis. O efeito no mundo é o mesmo, só exponencialmente maior", opina Marcelo Soares.

E conclui: "Mais do que super segmentação, a questão dos artistas [dos dias atuais] é de super renovação. No futuro, pode haver uma quantidade muito maior de artistas grandes do que antes, mas nenhum deles há de ser tão grande quanto o Roberto Carlos ou os Rolling Stones."

Resta saber o que venderá Wanderley dos Santos em sua barraquinha.

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