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Marcelo Coelho

Brasil com V

A campanha contra o Código Florestal abre a chance para que Dilma recupere o eleitorado de Marina Silva

No colégio em que eu estudava, só para meninos, uma semana inteira era reservada para o grande evento anual da Festa dos Esportes. No qual, evidentemente, os alunos faziam a mesma coisa que em todas as outras semanas do ano: jogar futebol e basquete.

Quanto mais, melhor. Bem ao estilo anglo-saxão, imaginava-se que engajar os garotos em tanta atividade física haveria de afastá-los de tentações masturbatórias.

Na verdade, se alguém visitasse o vestiário da escola com mais vagar, talvez mudasse de ideia a esse respeito. Pouco importa.

O fato é que todas as disciplinas convergiam para glorificar o certame esportivo. Na aula de artes, por exemplo, competia-se pela confecção do mais criativo cartaz que anunciasse a festa.

Exemplo típico: um ET, descendo do disco voador, ordenava ao terráqueo que o levasse à Festa dos Esportes. O Super-Homem se recusava a salvar o gatinho caindo do oitavo andar: "Não tenho tempo, preciso ir à Festa dos Esportes".

Kojak abandonava seus pirulitos e assaltantes; a Estátua da Liberdade descia de seu pedestal. Bananas caíam de seu cacho, rios mudavam de curso, as ondas do mar rugiam aos quatro ventos: vem aí a Festa dos Esportes.

Não sei quanta resignação se escondia em meio a tantos exageros; quanta obediência, quanta rotina, quanto cansaço.

Quem sabe o contrário: empenhava-se a fantasia disponível para fugir do tema, e a liberdade se exprimia em despropósito.

Escrevo tudo isso porque ando recebendo as mais variadas mensagens, agora que frequento o Facebook, contra o novo Código Florestal. É a campanha "Veta, Dilma", fenômeno na internet. Há quem, por ignorância ou gaiatice, tire a vírgula: a mensagem passa a significar que Dilma, ela própria, seja vetada pelo clamor dos internautas.

Mas o significado geral é mesmo o de apelar para o Executivo: apague-se, de uma vez, uma lei que resultou das pressões dos ruralistas.

Quem apoia a campanha parece concorrer pela versão mais extravagante. Já vi, no Facebook, a foto do dr. Spock, de "Jornada nas Estrelas", fazendo um "V" com os dedos do meio: "Veta, Dilma".

O Mussum, dos "Trapalhões", aparece dizendo "Veta, Dilmis". Mafalda, do cartunista Quino, parece menos otimista, com as costas curvas e o cabelo emaranhado: "Veta, Dilma".

Uma versão mais fofa mostra a presidente com um bebê no colo: "Veta, vó!". Crianças um pouco maiores, ao pé de uma árvore gigante, exclamam apenas: "Tia Dilma!".

Há ainda um filhote de tamanduá, ou de bicho-preguiça, não sei bem, segurando um cartaz com o pedido. Que, às vezes, aparece na versão "Veta tudo, Dilma".

Resumindo, estamos diante de uma torcida só comparável, nos anos mais recentes, àquela em torno do nome de Fernando Gabeira para presidente da Câmara dos Deputados.

De "mãe do PAC" a "tia" ou "vó" das gerações futuras, a imagem política de Dilma vai conhecendo uma inflexão. O movimento de "faxina" já tinha começado a reconciliar a presidente petista com uma classe média que, contra ou a favor, não sentia que Lula era "dos seus".

Posso estar errado, mas imagino que no governo Lula uma campanha dessas não prosperasse tanto: era maior a independência de Lula, ponhamos assim, diante da opinião pública. Ele sabia que seria popular, fizesse o que fizesse.

A chance se abre, assim, para que Dilma recupere aquilo que, "grosso modo", corresponde ao eleitorado de Marina Silva.

Não se quer outra coisa, ainda mais depois do fiasco de Demóstenes Torres, do que liberar o Executivo das pressões do Congresso, presentes tanto numa base ligada ao ruralismo, quanto num ruralismo ligado à oposição.

Entre Lula e Dilma, sejam quais forem as ambições de cada um, esboça-se uma separação. Popularíssimos ambos, diferem quanto ao grau de credibilidade de que dispõem na classe média metropolitana.

São as ONGs, os óvnis, os internautas, os terráqueos, que embarcam nessa jornada pelo veto. Mafalda, Mussum e o dr. Spock correspondem a essa espécie de vale-tudo imaginário, expressão da biodiversidade urbanoide, em que a política se desliga de interesses materiais imediatos.

Nos cafundós, nos currais, no baixo clero do Congresso, mas também nos polos do agronegócio, o ambiente é outro. O Brasil, mais uma vez, separa-se em dois, como as hastes divergentes de uma letra V.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris

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