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ENTREVISTA HERTA MÜLLER

Não me identifico com nenhum outro autor

GANHADORA DO NOBEL NARRA EM LIVRO TRAUMAS E DESASTRES DO TOTALITARISMO QUE A FORÇOU A TROCAR A ROMÊNIA PELA ALEMANHA E, À FOLHA, ATACA GÜNTER GRASS, CHINA E IRÃ

Alejandro Acosta - 25.nov.11/Reuters
Herta Müller durante a Feira do Livro de Guadalajara de 2011
Herta Müller durante a Feira do Livro de Guadalajara de 2011

FABIO VICTOR
MARCIO AQUILES
DE SÃO PAULO

Tortura, perseguição, medo e traição entranham vida e obra de Herta Müller.

Ganhadora do Nobel de Literatura em 2009, a escritora romena-alemã de 59 anos volta a acertar as contas com seu passado atormentado em "Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio", que acaba de sair no Brasil.

Lançado pelo Biblioteca Azul, novo selo da Globo (leia abaixo), o livro reúne discursos, artigos e ensaios da autora, que falou com exclusividade à Folha -por e-mail e em alemão, exigências dela.

Livro e entrevista revelam que, no título da capa deste caderno, independe a ordem do substantivo: Herta Müller é igualmente uma brava mulher e uma mulher brava.

Brava mulher por resistir à tirania e narrar tudo, reviver pela literatura. Em "Sempre a Mesma Neve...", volta a descrever como o regime do ditador romeno Nicolae Ceausescu (1918-1989) a acossou desde que ela se recusou a colaborar com a Securitate, polícia secreta do país.

Declarada "inimiga do Estado", a escritora se mudaria em 1987 para a Alemanha.

No ensaio "Cristina e Seu Simulacro", vasto painel do terrorismo do regime, Herta conta ter descoberto que até sua melhor amiga dos tempos de Romênia, que lhe deu ombro durante a perseguição, virara espiã do regime (e a espionou na Alemanha).

Em "Mas Sempre Ocultou", relata o espanto ao descobrir que o poeta e amigo Oskar Pastior, colaborador em seu último romance, foi ele também um espião. Na entrevista, explica por que o perdoa.

Herta Müller, cujo pai lutou do lado nazista na Segunda Guerra, é também uma mulher brava. Atacou o colega Nobel Günter Grass -por dizer, num poema, que Israel ameaça a paz mundial- e os regimes de China e Irã.

Deu algumas respostas mal-humoradas. E deixou três perguntas sem resposta: o que acha da crítica de que o Nobel é eurocêntrico?; conhece o Brasil e a literatura do país?; em que trabalha no momento?

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Folha - Por que a sra. decidiu reunir estes textos num livro?
Herta Müller - Eu tentei mais uma vez explicar de onde meus livros surgem, por que escrevo. E muitas coisas têm justamente a ver com minha vida, o convívio com a ditadura romena, a experiência da perseguição política e do medo -um dia a dia que não se pode nem imaginar nas democracias ocidentais.

O livro mescla palestras e artigos. O que diferencia o texto escrito para ser falado de um outro sem esse fim?
Uma palestra já é um "texto escrito" que foi lido em voz alta em alguma ocasião. Eu nunca falei em público sem anotações. Não me julgo capaz para isso.
Seu amigo Oskar Pastior é figura central deste livro. Apesar da descoberta de que ele colaborou com a Securitate, a sra. o perdoa. Por quê?
Sem Oskar Pastior eu não teria escrito meu último romance ("Tudo o que Tenho Levo Comigo"). O livro conta a história de como os alemães foram deportados da Romênia para os campos de trabalhos forçados da ex-União Soviética em janeiro de 1945.
Deportaram-se mulheres entre 17 e 45 anos e homens jovens ou velhos demais para a guerra. Foi o caso da minha mãe e de Oskar Pastior.
Pastior, com sua memória, me deu inúmeros detalhes. Após sua morte, quando descobriram que ele foi espião da polícia secreta romena, fiquei muito chocada.
Mas hoje sei pelas atas que Pastior foi chantageado [...] e que ele escreveu cinco relatórios em dez anos, todos eles banais e sem importância. Portanto foi por meio da passividade que ele conseguiu se safar da situação e, no fim, não causou dano a ninguém.
Hoje eu agradeço o fato de ele não ter me contado nada sobre a atividade de espião.
Sem a oportunidade de ler as atas -só após a sua morte elas se tornaram públicas-, eu não teria acreditado que ele só entregara relatórios sem conteúdo e teria rompido a amizade -sem nenhuma razão, como vejo hoje. E não teria tido a chance de pedir-lhe desculpas, pois ele morreu antes de que se pudesse ler os relatórios que escreveu.

No livro a sra. trata do suicídio, o definindo como "uma procura total pela felicidade". Concorda com Camus que o suicídio é "o único problema filosófico verdadeiro"? Como resistir à tentação de tirar a própria vida?
Para mim, pensar em suicídio não era um problema filosófico. Eu pensava nisso porque estava em uma situação sem saída. Quando me recusara a cooperar com a Securitate, perdi meu emprego, fui chamada várias vezes a interrogatórios e recebi ameaças de morte. Eu não sabia o que fazer. Quando eu estava com a corda no pescoço, pensei comigo: se me mato agora, eu faço o trabalho da Securitate; já que querem me matar, que façam então eles mesmos o serviço.

A obra da sra. é definida pelas marcas da opressão de sistemas ditatoriais. Há algum regime atual que tenha paralelos com o nazismo e o stalinismo? Há risco de aquelas experiencias se repetirem?
Dê uma olhada no que se passa agora no mundo. O que está acontecendo na China, onde pessoas que não concordam desaparecem em prisões secretas ou são condenadas a longas penas de prisão, como o Nobel da Paz Liu Xiaobo e sua mulher. E o que acontece na ditadura religiosa no Irã? Existe hoje uma religião patriarcal totalitária, que ameaça o mundo com a destruição de Israel.

A sra. escreve que a Romênia, "o país do fracasso universal", passou da tirania de Ceausescu a uma democracia corrupta. O que falta para o país se tornar viável?
Como na maioria das sociedades pós-ditatoriais, na Romênia os funcionários do antigo regime se arranjaram bem na nova ordem. Hoje são empresários e políticos, e o que domina o país agora é a corrupção. Há também o desinteresse da população em esclarecer a ditadura, [...] quase ninguém quer ler seus arquivos do serviço secreto, para saber quem o traiu ou espionou. Talvez gente demais tenha colaborado com o serviço secreto. A falta de interesse no passado impediu um novo começo com políticos livres de acusações.

A sra. escreve que a literatura não pode fazer nada contra as ditaduras, apesar de dizer que, a posteriori, ela pode mostrar tudo o que aconteceu. A literatura ainda tem o poder de influenciar as pessoas?
Acho que o que se aprende com livros é um processo individual. Eu aprendi muito com os livros. Mas o que eles fazem com cada uma das pessoas não se pode avaliar.

Kafka, Celan, Canetti são autores que escrevem em alemão, mas não nasceram na Alemanha, e compartilham experiências de vida com a sra. Eles, assim como Kertész e Cioran, são mencionados quando se fala na obra da sra. Com qual desses autores se identifica?
Eu não me identifico com nenhum outro autor. Há às vezes alguns interesses em comum. Mas experiências de vida são sempre diferentes. Destes, o mais próximo de mim seria Imre Kertész.

Como a sra. viu a polêmica em torno do poema em que Günter Grass critica Israel? Concorda com ele que Israel é uma ameaça à paz mundial?
Grass distorce a realidade. O Irã está ameaçando Israel com a aniquilação, e não o contrário. E chamar o texto dele de poema é dar um rótulo embusteiro. Grass perdeu para mim a sua credibilidade moral há muito tempo, porque ocultou durante décadas sua filiação à [nazista] SS.

Como analisa o comentário do Nobel V.S. Naipaul de que textos escritos por mulheres são reconhecíveis ao primeiro parágrafo?
Ah, isso não me interessa.

Leia a íntegra da entrevista
folha.com/no1085510

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