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Centro dirigido por viúva de Che rejeitou introdução brasileira

Além de suprimir execuções do revolucionário, livro preparado por cubanos despreza texto de historiador

Inéditos no Brasil, diários revelam bastidor da campanha que derrubou regime de Fulgencio Batista em 59

Divulgação
Che Guevara se dirige à população após a tomada da cidade do Fomento (Cuba)
Che Guevara se dirige à população após a tomada da cidade do Fomento (Cuba)

FLÁVIA MARREIRO
DE SÃO PAULO

"Roque cai na água."

É o capitão do iate Granma, que acaba de chegar ao litoral sudeste de Cuba com um punhado de homens liderados por Fidel Castro.

"Desembarcamos em um manguezal, perdemos toda a bagagem pesada", segue Ernesto "Che" Guevara, no primeiro dos cadernos que preencheu durante a campanha que derrubaria o regime de Fulgencio Batista em 1959.

"Pessoalmente notei algo que nunca tinha sentido: a vontade de viver. Isso deve ser corrigido na próxima oportunidade", anota, pós-combate, 18 meses depois.

Batizadas pelo próprio Che de "Diário de um Combatente", é a primeira vez que essas notas, feitas no calor da batalha, vêm à público em sua forma quase original.

Atenção para o "quase".

Lançado apenas em 2011 em Cuba e agora no Brasil, pela Planeta, "Diário" foi preparado para a publicação pelo Centro de Estudos Che Guevara, dirigido pela viúva de Che, Aleida March.

Antes, só o jornalista Jon Lee Anderson havia acessado os cadernos disponíveis para "Che Guevara: uma Biografia" (Objetiva), relançado neste ano em edição revista.

Na comparação entre ambos, vê-se que os apontamentos passaram pela tesoura da censura de Havana.

Para historiadores e aficionados, trata-se de ler Che no gênero que exercitou a vida inteira, do iniciático "Diários de Motocicleta", na juventude, aos dias finais na Bolívia, em 1967.

"O Che era um escritor compulsivo. Essas notas foram a base do famoso 'Passagens de uma Guerra Revolucionária', de 1963. Mas o livro não tem essa naturalidade do 'Diário', as primeiras impressões de quem está conhecendo Cuba, que pede livros de história e geografia básica", diz à Folha o escritor e historiador Luiz Bernardo Pericás.

Para Havana o material é sensível e teve de se ajustar para proteger a narrativa oficial, antes de circular em Cuba. Afinal, os "barbudos" de Sierra Maestra seguem no poder, após 53 anos, e Che é, ainda, o "homem novo".

Para começar, o livro suprime ao menos dois trechos em que Che executa pessoas. "Era uma situação desconfortável para as pessoas e para ele [Eutimio, delator], de modo que acabei com o problema dando-lhe um tiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio", lê-se no livro de Anderson. "Diários" interrompe a narrativa.

A edição -que a Planeta reproduz com poucas alterações- vem ainda lotada de notas de rodapé e anexos que explicam pouco ao leitor.

Há também idiossincrasias, como não informar que Vilma Espín, morta em 2007, foi mulher de Raúl Castro. Ou omitir que Celia Sánchez, importante personagem da guerrilha, foi depois companheira e amante de Fidel.

"Diário" tem dois prefácios que pouco querem dizer ao público brasileiro. A Planeta sugeriu um texto de Pericás, autor de "Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba" (Nova York, Atropos Press, 2009), como introdução, mas os cubanos não aceitaram.

Pericás assina a orelha e curiosamente acaba de ganhar menção honrosa no prêmio literário mais célebre de Cuba, o Casa de las Américas, com o livro "Os Cangaceiros".

De todo modo, as notas mostram a obstinação de Che a caminho da improbabilidade histórica -a vitória dos tripulantes do Granma- e tem momentos em que a observação e a emenda oficial tornam o conjunto mais revelador.

"A atitude de Fidel é realmente chocante: na hora das fotografias, não se moveu da rede, onde ficou lendo [a revista] 'Bohemia' com ar de majestade ofendida", anota Che em 1957, sobre a visita de um jornalista à serra.

A nota "traduz": Castro estava preocupado com o avanço inimigo, "o que é narrado por Che no 'estilo irônico' que o caracterizava, conforme expressou o próprio Fidel".

DIÁRIO DE UM COMBATENTE
AUTOR Ernesto Che Guevara
EDITORA Planeta
TRADUÇÃO Dafne Melo
QUANTO R$ 44,90 (376 págs.)

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