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Crítica biografia

Repleto de detalhes novelescos, livro dá pouca ênfase às rupturas

O autor, talvez preocupado com uma leitura cinematográfica, investe nesses recortes, arriscando menos na análise

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO

A narrativa colorida, cheia de diálogos, cartas, discursos e reportagens, é um dos pontos mais atraentes do primeiro volume da trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas, maior personagem brasileiro do século 20.

Lira mostra a trajetória de um político ambíguo. Navega por sanguinolentas guerras civis no Sul e descreve a teia do poder oligárquico. Conta como Getúlio na juventude gastava sua mesada em charutos e livros de Comte, Zola, Darwin, Nietzsche e Saint-Simon.

Lembra como ele, já no poder, flanava por Porto Alegre e Rio, frequentando livrarias e cafés. Horas antes do estouro da Revolução de 30, não deixou de jogar a sua prosaica partida de pingue-pongue com a mulher, Darcy.

Trata em detalhes da articulação política para a revolução (a face militar é mais rarefeita) e da inédita campanha popular que acabou por levar Getúlio de trem até o Catete. A leitura prende pelo dinamismo e pelo tom quase novelesco em alguns trechos.

Títulos de capítulos simulam manchetes exageradas. Um: "No tiroteio, um jovem tomba morto. Seria Getúlio, aos quinze anos, o assassino?". Outro: "Índia é estuprada e cacique, morto a tiro. O culpado é Getúlio Dornelles Vargas".

No primeiro caso, nenhuma evidência leva a crer que Getúlio seria o responsável pela morte de um estudante num entrevero em Ouro Preto (MG). No segundo, o criminoso era um homônimo, sem ligação com o político. Mais tarde, lembra Lira, Carlos Lacerda derraparia nesse erro no afã de atacar Vargas.

Talvez preocupado em retratar aspectos que possam ter uma leitura cinematográfica, o autor investe nesses recortes, arriscando menos na análise. Vasculha escritos, buscando traços autoritários. O rastro desenvolvimentista é pouco explorado.

Apesar de citar trechos de um dos primeiros discursos de Getúlio, em 1906, ainda como líder estudantil, Lira deixa de observar a defesa que Getúlio ali fez da indústria, já com coloração nacionalista. O ponto é destacado pelo economista Pedro Fonseca em "Vargas: O Capitalismo em Construção", lançado pela editora Brasiliense em 1989.

Com ideias cevadas no positivismo, Getúlio vai se metamorfoseando.

No governo do Rio Grande do Sul, se desprega dos preceitos tradicionais de austeridade, toma empréstimos no exterior, investe em infraestrutura, libera créditos e cria o banco estadual.

Tudo isso contrariava os princípios positivistas, pelos quais o Estado não deveria gastar o que não tivesse, comparando a gestão pública à economia doméstica, um discurso ainda presente hoje. Lira poderia dar mais ênfase à análise dos momentos que apontavam para rupturas.

Naqueles tempos, o Rio Grande do Sul era a única região que produzia essencialmente para o mercado interno. A geração de Getúlio soube curar feridas intestinas e partir para costurar um projeto nacional. Afinal, lá estava o seu mercado, e compartilhar o centro do poder passava a ser essencial.

Lira não envereda muito por esse caminho, preferindo concentrar o texto nas saborosas tramas da queda da República Velha. É bom de ler.

Mas o leitor acaba o livro se perguntando como aquela figura, amadurecida nas entranhas das oligarquias e pintada como um político matreiro, dissimulado, pôde dar o salto que deu.

GETÚLIO
AUTOR Lira Neto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 52,50 (664 págs.)
AVALIAÇÃO bom

Leia crítica da historiadora Marly Motta
folha.com/no1091098

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