Texto Anterior
|
Próximo Texto
| Índice | Comunicar Erros
Autor suaviza obsessão com a palavra Novo romance de Evandro Affonso Ferreira reflete preocupação menor com a forma para focar mais a alma humana Realista sem ser piegas, obra narra a história de um homem que vira mendigo ao ser largado por mulher amada FABIO VICTORDE SÃO PAULO Evandro Affonso Ferreira abandonou seu dicionário de palavras. O escritor mineiro de 67 anos, 49 deles vividos em São Paulo, cultivou por anos um léxico particular, termos muito sonoros mas pouco usados, embora todos existentes. Chegou a juntar 3.000. "Virou obsessão, eu estava ficando refém daquilo", justifica. O novo romance do autor, "O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam" (Record), reflete essa pequena reviravolta. Se antes a mania aparecia já nos títulos das obras ("Araã", "Grogotó", "Erefuê" etc), agora seu texto é menos submisso ao estilismo. Não que a prosa de "O Mendigo..." seja simples -continua difícil e vigorosa-, mas é menos empolada que nos primeiro livros. O escritor afirma que desde seu trabalho anterior, "Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus", preocupa-se menos com a forma e está mais emotivo, mais voltado ao que está a sua volta, "a solidão, a loucura, a tristeza". "A velhice e a proximidade da morte trouxeram uma preocupação com a decrepitude humana. Antes me preocupava com a vida das palavras, hoje me preocupo com a morte do homem." "O Mendigo..." narra a história de um sujeito inominado que vai morar na rua ao ser largado pela mulher. Ela deixou-lhe só um bilhete: "ACABOU-SE; ADEUS". Enquanto espera a volta da amada (e o espera todo dia), o indigente-narrador, que está há dez anos na sarjeta, é como um cronista da ruína. Descreve este submundo miserável tão visível hoje em qualquer metrópole do país. Homem culto antes de tombar, o mendigo, como revela o título, é um admirador do humanista holandês do século 16 Erasmo de Roterdã. Ferreira diz que teve a ideia para o livro quando, numa caminhada de dez quadras pelo centro de São Paulo, contou 95 mendigos. O autor consegue uma proeza: retratar o cotidiano dos esfarrapados com realismo e poesia, mas sem ser piegas nem grotesco. Exemplo: "Veja: um dos três maltrapilhos alcoólatras caiu de bruços. A-hã: testa toda ensanguentada. [...] Mulher-molusco -lançando mão da praticidade implacável feminina- tomou de um deles a garrafa virando ato contínuo o gargalo sobre a testa do pobre-diabo. Sim: antisséptico inebriante. [...] Enfermeira agindo de improviso no front. Resumo da ópera-bufa: os três soldados alcoólatras ficaram sem munição." O autor admite que, mesmo amenizando o experimentalismo, permanece um escritor difícil. "Gosto do som das palavras, não vou fugir disso. Nunca vou ser best-seller. Minha literatura é complicada." Além do estilo, os hábitos de Ferreira contribuem para sua certa obscuridade. É recluso, não participa de festivais, não integra coletâneas ("Prefiro errar sozinho"). Dedica-se a ler e escrever, o que soa esquisito num tempo em que escritores se confundem com artistas. Talvez por isso seja tão festejado pela crítica e por seus pares. Teve como padrinho José Paulo Paes. Foi definido por Millôr Fernandes como "vivificador das palavras". Ferreira é autodidata, só fez o antigo primário. Foi bancário e publicitário. Teve um infarto aos 45. Montou e vendeu dois sebos lendários, o Sagarana e o Avalovara. É leitor de Bruno Schulz, Broch, Musil e Samuel Rawet. De perto, é amável e um gozador nato, que pontua a conversa com tiradas farsescas. "Minas para mim é só um retrato na parede -e não dói nada", parodia Drummond. Outra: "Odeio o Lobo Antunes, porque uma página dele é melhor que minha obra toda. Ele me faz crer que não sou bom escritor, mas eu quero me iludir, então o odeio." Ou: "Minha situação é complicada: não gosto da vida, mas tenho medo da morte".
O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |