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Álvaro Pereira Júnior

Quando a música termina

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

Música clássica? Tarde demais. Jazz? Música morta. MPB? Só da bossa nova (exclusive) para trás

PARA OUVIR música, mais especificamente rock, é preciso olhar para cima. Imaginar que o músico seja melhor que você. Venha de uma esfera superior, enxergue muito mais longe, tenha mais bagagem. E traga dentro de si uma verdade única, que sangra sem controle e precisa ser exposta.

Música clássica? Jazz? Gêneros sofisticados que se seguram sozinhos. Rock, essa tosqueira de, quando muito, três acordes? Aí, muda: a responsabilidade cai sobre os ombros do artista. Que precisa fazer arte a partir de (quase) nada.

Quantos roqueiros veneramos... E nem falo dos Beatles, Stones, Clash. Esses são os óbvios.

Penso no Joy Division, do vocalista/poeta Ian Curtis, que se enforcou aos 23 anos. No New Order, formado pelos remanescentes do Joy Divison, que se vestiam como bancários e dividiam os lucros igualitariamente. Artífices de um coletivismo pós-punk: quem não acreditou?

No Gang of Four, autointitulados maoistas, superpolitizados. No desespero juvenil do Nirvana. Na demência dos Cramps, nas texturas delicadas do Radiohead, na sutileza minimalista do século 20. No sex appeal da ultracontemporânea Lana Del Rey e seu bocão todo trabalhado.

Rock é isso. Acreditar que Jack White, na capa de 11 em cada 10 publicações musicais dos últimos meses, é um visionário. Botar fé na nova banda de meninos de 19 anos do sul do País de Gales (ou qualquer outro lugar), não por nada que eles concretamente façam, mas por considerar a iconoclastia juvenil um valor em si, mesmo que a gente não entenda direito o que tem a dizer.

Com graus maiores ou menores de autoilusão ao longo dos anos, posso dizer que foi assim que olhei para o rock and roll. E não só eu. Também críticos muito mais velhos, mais eruditos, com muito maior conhecimento musical e capacidade analítica. Greil Marcus (67 anos), Richard Meltzer (idem), Robert Christgau (70), Simon Frith (que deve ser só uns dez anos mais novo que os anteriores).

Desejo boa sorte aos coroas em sua lida roqueira, mas para mim acabou. Esse novo estado de espírito, essa prostração, tudo isso começou há alguns anos, com a falta de entusiasmo para shows.

Logo eu, que sempre achei música ao vivo mais interessante que gravada. Mas, um dia, passou. Trânsito, filas, ingressos caros, cerveja quente, vergonha de ser um tiozinho em meio à petizada, dor nas costas de ficar em pé tanto tempo. Qualquer desculpa passou a valer para não ver mais concerto algum.

Aos poucos, o desinteresse foi se estendendo ao rock como um todo (e não posso falar em música, mas em rock, porque isso é praticamente só o que ouço -ou ouvia).

Se assisto a vídeos antigos do Joy Divison, não vejo mais aqueles porta-vozes da desesperança pós-punk em que tanto acreditei. Enxergo um grupo de caipiras ingleses meio sem rumo, meio sem saber o que faziam. Idem para o Nirvana e tantos outros ("Deve haver algo de muito errado na Terra quando a capital do rock é um fim de mundo jeca como Seattle", dizia, na época, um sábio crítico de rock).

E mesmo Lana Del Rey, uma das poucas coisas recentes do pop/rock contemporâneo que me interessaram, vale muito mais pelo aspecto, com o perdão da palavra, "sociológico", sua construção como artefato pop. O papel da web em tudo isso e a metamorfose on-line, tão veloz, que ela sofreu: de deusa "indie" vinda do nada a uma suposta enganadora que se fingiria de alternativa, mas se sustenta numa eficiente máquina de "hype".

No que se refere a ela, musicalmente, só consigo prestar atenção nas letras sem sentido, nas rimas pobres, na falta de métrica, nos arranjos empastelados por sintetizadores.

Nunca imaginei que esse dia fosse chegar, mas aconteceu. Sai a BBC 6, de música, entra a BBC 4, "talk radio". Sai a KEXP, rádio indie de Seattle, e toma conta do "dial" a WBUR, de Boston, a mais sofisticada das emissoras da rede americana National Public Radio.

Entrego-me a uma "twilight zone" musical, um reino do nada. Música clássica, tarde demais. Jazz, música morta desde sempre, vai contra meus princípios. MPB, só da bossa nova (exclusive) para trás.

Escrevi, por muitos anos, uma coluna de música chamada "Escuta Aqui". Agora, reina o silêncio.

cby2k@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar

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