Índice geral Ilustrada
Ilustrada
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Mônica Bergamo

monica.bergamo@grupofolha.com.br

Isadora Brant/Folhapress/Porto Alegre, SP
O advogado em sua casa, em Porto Alegre
O advogado em sua casa, em Porto Alegre

'Dilma foi o meu maior amor'

Ex-marido e grande amigo da presidente, Carlos Araújo fala de prisão, tortura e também de paixão: 'Dilma é romântica e gosta de sonhar'

"Um café? Sim, quando você quiser, meu anjo." E assim, no primeiro telefonema, e em menos de cinco minutos, foi possível marcar um encontro com o advogado trabalhista Carlos Araújo, 74, ex-marido de Dilma Rousseff. Uma semana depois, ele abria a porta de sua casa, à beira do rio Guaíba, em Porto Alegre, para uma entrevista.

-

De temperamento oposto ao da presidente, tira fotos, é filmado. "Pode, sim", repete, a cada solicitação. "Olha, pode tudo. Aqui é liberdade total." Só vacila uma vez: "O quarto do bebê [Gabriel, 1, neto dele e de Dilma]? Não, aí..." Esfrega a testa: "Olha, a minha filha [Paula] é brava. Ela é muito brava".

-

Araújo continua a caminhar pela casa de quatro cômodos onde viveu com os pais, Afrânio e Marieta, já mortos, e depois com a presidente por 22 anos. "Quem vai levar uma bronca daquelas é a Dilma", diz. Paula viajou para Nova York e deixou Gabriel com a avó em Brasília -com a recomendação expressa de que não fosse fotografado pela imprensa. "Mas a Dilma se entusiasmou, levou ele lá na porta do Palácio."

-

Separados há 16 anos, ele e a presidente nunca se afastaram. "Ela que saiu daqui de casa. Sabe como é, a gente vai levando, eu não me separaria. Mas a Dilma tinha as razões dela. E depois eu a visitava, ela me visitava, a gente almoçava..." E a presidente comprou apartamento na rua do ex, "pra ficar pertinho, pra um proteger o outro".

-

Até hoje, passam Natal, Réveillon e "os feriadões" que conseguem juntos -Dilma, a filha, o genro, o neto, o ex-marido e a arquiteta Ana Meira, com quem Araújo é casado pela quinta vez (ele tem dois outros filhos de outros relacionamentos). Na virada do ano, foram todos para uma praia na Bahia.

-

Os dois se conheceram em 1969, numa reunião do Colina, grupo guerrilheiro em que ela militava e ao qual ele queria aderir. Passaram a viver juntos, na clandestinidade, já no segundo encontro.

-

ELA ERA MUITO BONITA

"A gente se amou rápido. Existe amor à primeira vista? Foi isso. Ela era muito bonita. Muito bonita. Inteligente. Decidida. Nossas energias, nossas fantasias se combinaram ali. O nome dela [na clandestinidade] era "Vanda". Eu era "Antero". Sabia que era mineira, pelo sotaque, e ela, que eu era gaúcho. Mais nada.

-

Foi uma relação intensa. Uma noite, nós tivemos uma briga violenta, à 1h da manhã, numa rua movimentada do Rio, um gritando com o outro. Havia cartazes procurando a gente, e nós ali, correndo o risco de ser presos por uma briga afetiva.

-

Ela sempre foi muito brava, de personalidade forte -mas extremamente generosa e solidária. E é até hoje."

-

Araújo sofre de enfisema pulmonar. Mesmo depois de separados, diz, Dilma sempre o cercou de cuidados. "Qualquer coisinha, já dava dura nos médicos." Hoje, ele respira com o auxílio de máquinas de oxigênio. Não pode ir a Brasília por causa do ar seco. Recentemente, ficou internado. Mas não se arrepende de ter fumado por décadas. "Era um prazer imenso."

-

Dilma foi presa em janeiro de 1970. Ele, em agosto. Neste período de separação forçada, Araújo teve um rápido romance com a atriz Bete Mendes, que também aderira à luta armada. Ele prefere não falar sobre isso. Estava com ela quando foi preso.

-

A TORTURA

" Fui preso pela equipe do [delegado Sérgio Paranhos] Fleury, no Dops. Me botaram no pau de arara, nu. Botavam fios nos dedos dos pés e das mãos, nos órgãos genitais, na língua, cabeça, orelhas. Ligavam aquilo na TV. Cada vez que passava de canal, era um pavor, pavor, pavor. Atiravam água e davam cacetada. Dói e parece que tu vai explodir. E o médico ali tirando a pressão pra ver se tu aguentava.

-

A pessoa, para torturar, ou é doente mental ou está animalizada. Pessoas que me torturaram se dopavam na minha frente, com injeção. Não tinham coragem, mas tinham que cumprir ordens.

-

Em geral, na literatura da esquerda, todos resistiram à tortura. Todos são heróis. E isso não é verdade, é ficção. Tem pessoas que aguentam mais, outras menos. Mas é insuportável. Acho que muitos morrem sem dizer palavra porque não têm o que dizer.

-

E o que acontece? As pessoas que vão ser torturadas não sabem que a tortura é praticamente irresistível e que elas vão precisar encontrar um mecanismo para amainar a situação. Nós não estávamos minimamente preparados. Toda pessoa, entre a dor continuada e a morte, prefere a morte. Porque é a forma de aliviar a dor.

-

Eu vi que não resistiria, que a dor era insuperável e que a única coisa digna que eu poderia fazer era me matar. Porque eu ia falar e entregar os meus companheiros.

Decidi: 'Vou inventar [para os militares] um encontro com o [Carlos] Lamarca e me matar'. Enfermeiros passaram a noite me dando massagem para eu conseguir ficar de pé no dia seguinte. Na tortura, o físico desmorona."

-

TENTATIVA DE SUICÍDIO

"No outro dia, me levaram a uma rua na Lapa. E eu comecei a vacilar. Dizia pra mim mesmo: 'Bem que tu falaste ontem lá na tortura que tu ia chegar aqui e ia te acovardar e não te matar'. Aí comecei a pensar: 'Quem sabe me atiro debaixo de um carro e não morro?'. Passou um fusca, veio uma Kombi. 'É alto, pode ser que eu dê sorte'. E me atirei. Tô ali, um bolo de gente, e ouço o cara da Kombi: 'Por que logo comigo, moço?'. Coitado, né? Decerto ia trabalhar e ficou desesperado."

-

Dilma cumpriu pena em SP e ele, no Rio. Na cadeia, conheceu a sogra, Dilma Jane, que foi visitá-lo. "E aí nasceu uma amizade tão profunda que resiste ao tempo. Ela é brilhante, revolucionária. Pensa além de nosso tempo." Araújo foi depois para o presídio Tiradentes, em SP, onde estava Dilma. As mães dos dois insistiram tanto que, "para se verem livres", as autoridades os reconheceram como casal. "O [delegado] Romeu Tuma deu parecer como que abençoando a relação. Nossa certidão de casamento foi emitida pelo Dops."

Dilma foi solta antes e passou a morar com os sogros em Porto Alegre, na casa onde Araújo vive até hoje. De lá, é possível avistar a Ilha do Presídio, para onde Araújo foi transferido logo depois. "Tá vendo aquele negócio verde ali? Ali, ó! Bem no meio do rio. Fiquei preso ali."

-

Depois de libertado, e com a abertura, o casal passou a militar no PDT de Brizola. Puderam enfim ter uma vida (quase) normal. "Nós éramos militantes [Araújo foi deputado estadual]. Chegávamos em casa exaustos, às vezes tinha briga por causa de política. Mas era um casamento sem muito conflito."

SONHAR JUNTO

"A Dilma é bastante romântica, sim. Gosta de música, de ficar junto, sonhando, pensando. Ah, não há dúvida: a Dilma foi o meu maior amor."

VAIDADE

"Ela era pouco vaidosa. Foi ficando quando começou a ocupar cargos no Estado. Hoje gosta de se vestir... embora aquelas roupas que ela usa ali [risos]... São bonitas. Mas todo mundo fala que é sempre a mesma, né?" Em 2010, quando fez plástica, Dilma ligou para o ex: 'Tu me leva lá? Fica lá comigo?'."

-

Quando Lula passou a dar sinais de que seria candidata, Dilma chamou o ex-marido e a filha para jantarem num bistrô. "A Paula ficou perplexa também. Eu perguntei: 'E tu te achas em condições de enfrentar essa parada?'. E ela: 'Tranquilamente'. Esse negócio de dizer que a Dilma é poste, não gosta de política... Como não gosta se fez política a vida inteira?"

-

Quando Dilma revelou que estava com câncer, "foi um choque terrível". "A gente acaba sendo meio irmão, sendo muita coisa ao mesmo tempo. Eu de certa forma sou a família da Dilma. Quem ela tem? A filha, a mãe e eu. E também ela será sempre a minha família. É impossível a gente pensar de outra forma."

-

A assistente de Araújo o interrompe. "O embaixador João Carlos quer falar ao telefone." Araújo atende: "Alô? Grande alegria, grande satisfação falar contigo, meu velho. Tu estás onde? Estamos com saudade de ti também. Tô louco para que tu venha para a gente se encontrar". Desliga. "Ele vai trazer o [presidente do Uruguai José] Mujica aqui em casa, eu acho."

-

Dias antes, Araújo havia recebido José Dirceu. Apesar da movimentação ("Ligam o dia inteiro atrás dele", conta a assistente), Araújo diz que evita se envolver. "Tenho que ter um cuidado tremendo porque acham que o que eu falo é o que a Dilma pensa."

-

Ele elogia a Comissão da Verdade. E critica a Lei da Anistia, "feita de cima para baixo". "Assim como nós [militantes de esquerda] fomos julgados, todos deveriam ser. Somos uma democracia. Quero sublinhar que temos que respeitar o que está vigindo. Mas posso ter aspirações."

-

Araújo acha que, por causa do neto, Dilma passará a visitar Porto Alegre com mais frequência. "Ela está encantada. Tá todo o tempo com ele no colo, brinca, pega na mão e anda por todo lugar. E ele pode tudo, tudo, tudo. Esse nunca vai levar bronca [de Dilma]. Esse vai dar bronca."

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.