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Marcelo Coelho

Mulheres em surdina

São de estátua esses olhos: muitas vezes vagos, turvos, esvaídos. Neles está o segredo de Modigliani

Foi-se o tempo daquelas exposições gigantescas, como a da arte russa ou a da China, que juntavam fila na Oca do Ibirapuera. Fui ver no domingo a mostra Modigliani, no Masp, sem espera nem aglomeração. Junta-se o colapso das atividades de Edemar Cid Ferreira (cujo envolvimento com as artes lhe dava o prestígio que a falência do Banco Santos lhe retirou) e a crônica pobreza do Masp.

O resultado é uma situação bem mais modesta para as mostras em São Paulo, na qual a Pinacoteca se sai melhor. Sem ser muito grande, a exposição Giacometti, que já comentei aqui, tem coisas de primeira ordem -e tudo está apresentado com clareza, numa excelente ambientação.

Contam-se nos dedos de uma mão os quadros realmente representativos de Modigliani na mostra do Masp. Mesmo alguns itens do acervo do próprio museu não foram deslocados para o andar de baixo.

No fim, uma exposição menor tem suas vantagens. Pouca gente tem ânimo de ficar horas e horas parando para ver cada quadro.

Acho que acontece em qualquer lugar do mundo: nas primeiras salas, é o entupimento. O cidadão resolve ler as explicações escritas na parede, aplica-se a examinar os primórdios da carreira do mestre.

Da metade para o fim da exposição, quando as coisas tendem a ficar de fato mais importantes, o que se vê é uma discreta corrida para a lojinha e para a cafeteria.

Pobre lojinha do Masp! Nem catálogo da mostra Modigliani existia. O folheto grátis não traz a lista dos quadros da exposição.

Paciência. Sem nenhum oba-oba, muita coisa se ensina e se explica sobre a vida e a obra de Modigliani. Ele viveu apenas 35 anos (1884-1920) e demorou um bocado para chegar ao estilo que o tornou inconfundível -seus retratos longos e oblíquos surgem por volta de 1915.

No Masp, é possível ver algumas paisagens de seus professores -personagens bastante obscuros da adaptação italiana ao impressionismo. Os textos nas paredes são concisos, mas úteis e, sobretudo, críticos.

Numa das primeiras tentativas de Modigliani na arte do retrato, por exemplo, a curadoria aponta a dificuldade do pintor em criar volumes nos ombros e no peito da figura. O rosto convence, mas parece colado numa estampa, num figurino de paletó e gravata.

"Ah, é mesmo!" Se estivéssemos na correria e no estrondo de uma megaexposição, talvez não fosse possível aprender tanto.

Aparece também uma curiosidade: três quadros de Jeanne Hébuterne, a grande paixão de Modigliani, que se suicidou, grávida de oito meses, um dia depois da morte do marido. São coloridos como vitrais, com grandes placas de azul intenso e de vermelho -quase o oposto dos tons tênues, em surdina, de Modigliani.

As fotos de Modigliani e Jeanne Hébuterne são poucas: mas como eram bonitos e que jeito moderno eles tinham!

E a modernidade, por fim, aparece nas esculturas do autor -cada face encompridada até a distorção segue o exemplo das máscaras africanas. De comprido em comprido, chegamos aos retratos da fase final. E novamente a exposição atende a seu papel didático. Num painelzinho, aparecem reproduções de pintores do passado -Botticelli, Parmigianino, Ingres- e dá para ver de que modo Modigliani absorveu a elegância, e, como diz o texto, a "melodia da linha" presente nesses mestres.

Vou agora para os cinco ou seis quadros importantes da mostra: o desenho se desenovela em cada rosto. Imagino uma linha perpendicular, cortando o quadro na metade: aquela mulher, que parece pender tanto para o lado esquerdo, se reequilibra. Os olhos não mais parecem fora de prumo e desiguais: a falta de simetria parece representar o volume do rosto, que se chapava na superfície plácida, triste, da cor.

São de estátua esses olhos, como se sabe: muitas vezes vazados, vagos, turvos, esvaídos. Neles está o segredo de Modigliani. Quantas vezes, numa pintura clássica, a modelo parece nos encarar de forma provocativa e coquete?

Modigliani atrai nossa atenção para a graça e sinuosidade (magramente moderna) do corpo. Mas os olhos da modelo nos ignoram, vagando no espaço dos anjos. O artista recebe as imagens em silêncio, e as transmite numa espécie de liturgia pura, sem pompa, santificada, com máximo pudor.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA: Contardo Calligaris

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