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Álvaro Pereira Júnior

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Brega, escolha ou destino

Talvez aquele brega da época do Chacrinha nem fosse melhor que o de hoje. Mas era mais visceral

Fora de si, o normalmente fleumático Cauby Peixoto rola no chão agarrado à dançarina Fernanda Terremoto. A plateia vibra, sabendo que isso é só o começo de mais uma noite memorável.

Há muito mais atrações a caminho. Carlos Alexandre vai cantar seu maior sucesso, "Feiticeira". Tony Damito, ídolo dos taxistas, virá com "Não Vá Embora" (abrindo e fechando uma das mãos, continuamente, na hora do refrão).

Edith Veiga também esta lá, a própria voz da Boca do Lixo, centrão boêmio de São Paulo, neblina e rabo de galo nas madrugadas que nunca terminam. Seu sucesso: "Meu Homem", que Ângela Maria também gravou.

Mais Ricardo Braga ("Uma Estrela Vai Brilhar"), Ismael Carlos (de "Fofoqueira", plágio da já citada "Feiticeira") e a hispânica de nacionalidade indeterminada Júlia Graciela. Ela defende a clássica "Anúncio de Jornal", sobre uma moça ingênua que fica feliz ao conseguir emprego de secretária e acaba perdendo a virgindade com o patrão sem escrúpulos.

Nos bastidores, o cantor Chrystian (muito antes de formar a dupla sertaneja com Ralf) troca beijinhos com a namorada: Gretchen, então com 21 anos.

Leitores de certa idade e certo pendor estético já perceberam o que os parágrafos iniciais descrevem. Claro: a psicodélica "Buzina do Chacrinha", transmitida ao vivo, às terças-feiras, do teatro Bandeirantes, São Paulo, na virada dos anos 70 para os 80 do século passado.

Naquela época, o universo do Velho Guerreiro era dominado pelo brega. E só podia ser assim. Faltavam ainda alguns anos para a explosão do rock brasileiro. A MPB "séria" estava em outra. Artistas de maior prestígio, como Roberto Carlos, já eram contratados da Globo. Na Bandeirantes, restava a Chacrinha se abastecer na bregolândia

Mas por que Chacrinha é assunto desta coluna? Porque pretendo usar os artistas da "Buzina" para comparar o brega dessa época ao que hoje chamamos de brega. Pode-se dizer que aquela turma era brega de verdade. Sua identidade musical se formou a partir do que restava da jovem guarda, mesclado à música "de fossa" e ao som que se ouvia nas zonas de prostituição.

No geral, não havia distanciamento crítico dos artistas em relação às músicas que cantavam e compunham. Sua produção era espontânea. E aqui não vai nenhuma crença na superioridade da arte "naif". Tampouco um elogio, de extração jdanovista, à pureza do pensamento proletário. Talvez aquele brega nem fosse melhor do que de hoje. Mas era mais visceral.

Artistas atuais considerados bregas, como o cearense Falcão ou a turma do tecnobrega do Pará, são muito diferentes do velho elenco do Chacrinha. Vêm de um outro universo, muitos com formação universitária. São superarticulados, têm modelos de negócios inovadores, construíram personagens para si mesmos. Eles escolheram o brega entre vários caminhos possíveis. Não era seu destino inevitável.

O próprio Reginaldo Rossi, de incontestáveis credenciais no brega "roots", hoje embarcou firme na autoparódia. Da turma mais recente, a safíssima Gaby Amarantos é a expressão máxima disso que se poderia chamar de pós-brega.

"Não gosto de bandas que piscam para mim", me disse uma vez Greil Marcus, crítico musical americano dos mais influentes. Era um petardo dirigido aos Ramones. Marcus não engolia a fachada tosca e proletária que os Ramones projetavam.

Ele sabia que o líder, Joey Ramone, era um sujeito urbano, letrado. Nesse sentido, a fúria punk da banda -canções ultra-simples, rápidas, o rock reduzido a seu mínimo- era postiça. De acordo com essa visão, era como se os Ramones estivessem o tempo todo comentando o punk, e não de fato praticando esse gênero musical.

Mas essa conversa com Marcus tem mais de dez anos, época em que os críticos da escola que ele representa viviam buscando autenticidade nos roqueiros. Analistas mais jovens, como Sasha Frere-Jones, da "New Yorker", rejeitam essa cobrança. Em um artigo sobre a cantora Lana Del Rey, Frere-Jones escreveu que "a música pop é o único gênero que inspira essa discussão notoriamente estúpida".

Espero que você não faça juízo parecido deste texto. Brega "roots" ou pós-brega: alguma preferência?

cby2k@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar

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