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Crítica ficção Alter ego de Zuenir Ventura acerta as contas com o passado Inspirada em Nelson Rodrigues e Lúcio Cardoso, nova ficção do jornalista tem trama sobre laços de família NELSON DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHA Um espírito imortal baixou no jornalista Zuenir Ventura. Um não, dois espíritos imortais e moralizantes: o do mineiro Lúcio Cardoso (1913-1968) e o do pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980). Foi uma possessão rápida, mas bastante iluminadora. Baixaram e alertaram: "Os primeiros desastres da vida começam na família". Insistentes, lembraram outro mestre no assunto, o chileno Alejandro Jodorowsky: "Todos os nossos problemas sempre começam em nossa árvore genealógica". Sensibilizado com essa manifestação fantasmagórica, Zuenir, que estreou na ficção em 1998 com "Inveja: Mal Secreto", deu tratos à bola e começou a escrever seu novo romance. A trama de "Sagrada Família" tem início nos anos 1940, época em que expressões como "dar tratos à bola" e "fazer o footing" eram corriqueiras. O cenário é a fictícia e provinciana Florida, cidade da região serrana do Rio de Janeiro. O assunto é o mesmo que obcecava Lúcio Cardoso e Nelson Rodrigues: a família num estado constante de tensão sexual. No romance de Zuenir, não há a atmosfera de morbidez e malignidade que encontramos, por exemplo, na "Crônica da Casa Assassinada", de Cardoso. Tampouco os artifícios do melodrama, presentes na peça "Vestido de Noiva" ou nos contos de "A Vida Como Ela É", de Rodrigues. Na verdade, há, sim, mas em doses controladas. HIPOCRISIA Certa morbidez melodramática é o que caracteriza a destemperada e impulsiva Nonoca, de "Sagrada Família". Nonoca, a jovem viúva fogosa. A antagonista sexual das filhas, Cotinha e Leninha. Morbidez melodramática que também caracteriza o carismático e violento Douglas, futuro marido de Cotinha. E outros tantos coadjuvantes. Salva-se desse mal apenas o protagonista-narrador, Manuéu (a grafia é essa mesmo, um erro de escrivão), que se vinga da família contando sua história de hipocrisia, inveja, desamor e incesto. Manuéu é divertido e sagaz. Ele é, na verdade, uma projeção ficcional do próprio Zuenir Ventura, que escreveu o romance "fortemente inspirado em memórias". O passado distante, visto através de suas retinas, é uma coleção de neuroses. Mas é também um mosaico delicado. Da chegada da Coca-Cola ("Fogo de palha, não dura mais que um verão") aos catecismos de Carlos Zéfiro, cada lembrança brilha afetuosamente. Aos leitores mais jovens essa nostalgia talvez não váinteressar. A juventude liberada e libertina não parece muito atraída pela pré-história, época em que seus avós eram a juventude. Os mais velhos, esses não ficarão indiferentes à sacanagem e à poesia dos longínquos tempos, quando a moral católica e o impulso sexual ainda provocavam mirabolantes curtos-circuitos.
SAGRADA FAMÍLIA |
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