Índice geral Ilustrada
Ilustrada
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Livros

Encontros gestam festa literária das UPPs, no Rio

Programação reúne 60 escritores amadores a autores consagrados

Jovens passaram por seleção que incluiu escrever texto sobre a cidade; Flupp deve ocorrer em novembro

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

"Que paralelo que você faz entre a literatura marginal e o cânone?", perguntou Luana Vasconcellos, estudante de letras de 24 anos, a Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, escritor do Capão Redondo (zona sul de São Paulo).

"Lima Barreto, pai da literatura marginal, morreu no manicômio, mas a Academia não aceitou ele. Quem sabe a academia periférica de letras, para não ter que andar com aquela roupa pesada, cheia de medalhas...", respondeu.

Luana mora em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, e é "poeta auxiliar" do grupo Uma Noite na Taverna, que organiza recitais.

"A gente acredita que poesia não precisa ser diluída. Se você não tem capacidade de absorver na hora, serve como alavanca de busca", diz ela.

Ao lado de outros 59 jovens autores de bairros populares, ela segue o projeto Flupp Pensa -preparação para a Festa Literária das UPPs (alusão às favelas com Unidades de Polícia Pacificadora), prevista para novembro.

Desde abril, os escritores amadores participam de oficinas e debates com autores consagrados. Para isso, passaram por uma seleção que incluiu um texto sobre o Rio -30 trabalhos do grupo serão publicados em livro.

"É gente da geração do ProUni [programa federal de bolsas em universidades privadas] ou herdeira de movimentos sociais como o Afro Reggae e a Cufa (Central Única de Favelas). A gente identifica e dá rede", diz o jornalista Julio Ludemir, autor de "No Coração do Comando".

Ele idealizou a Flupp ao lado de Ecio Salles, coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica, da professora da UFRJ Heloisa Buarque de Hollanda e do antropólogo Luiz Eduardo Soares, coautor de "Elite da Tropa".

SANIDADE

Em junho, o Centro Cultural Cartola, na favela da Mangueira, recebeu a gaúcha Eliane Brum, autora do romance "Uma Duas" (Leya) e de livros de reportagem como "O Olho da Rua" (Globo).

Ela falou de sua opção por reportar a singularidade de pessoas comuns, "invisíveis".

Contou, entre outros casos, como acompanhou os últimos 115 dias da merendeira Ailce de Oliveira Souza, que tinha um câncer incurável.

"Fiquei emocionado. Vi que para você literatura é importante para manter a sanidade. Se não tivesse a palavra escrita, como faria?", perguntou Enrique Coimbra, 19, filho da cozinheira de um quiosque em Guaratiba (zona oeste do Rio). "Eu teria morrido", disse Eliane.

Como muitos dos integrantes do Flupp Pensa, Enrique tem um blog em que posta seus escritos.

Está na "terceira temporada" de uma série de "ficção jovem adulto", que pode ser impressa ou baixada para outras plataformas digitais.

A série conta atribulações de adolescentes que poderiam ser de qualquer classe. Caso também dos versos de Ana Paula Lisboa, 24, professora de arte e estudante de letras. No Batan, ela quis saber de Ferréz se esperariam que falasse só de favela.

"O sistema é uma máquina. Vira e mexe pega um cara da periferia e faz dele parte da engrenagem. Vocês podem escrever sobre Marte, mas, se a menina é da Cidade de Deus, o cara vai falar que Marte é uma metáfora para onde ela mora", disse ele.

DOSTOIÉVSKI

Filho de mãe doméstica e pai vendedor de cuscuz de tapioca, Jessé Dantas, 30, o Jessé Andarilho, aproveita a

Flupp para reescrever seu primeiro livro, "Fiel", sobre um garoto de família evangélica.

Ele perguntou a Ferréz como deu o pulo para conseguiu viver de literatura.

O paulistano, que desdenhara dos ritos acadêmicos, receitou "malditos", como Bukowski, mas também clássicos, como os russos Dostoiévski e Tchékhov-por estarem em domínio público, as obras desses escritores eram mais baratas.

"É importante ler. Quando você tem espaço, precisa falar com propriedade. Gente que mora em comunidade tem que saber no mínimo duas vezes mais que o boy."

Ferréz discorreu sobre o "século do parecer". "Os moleques só estão se pegando para o tráfico por causa do consumo". Não era por aí que passava a cabeça da plateia.

"Estou lendo, 'Quarto de Despejo', da Carolina de Jesus, que fez sucesso e depois os críticos caíram de pau. Como escapar desse discurso do que é ou não literatura?", questionou Diego Santos, 23, colaborador de um jornal do morro da Providência.

Recém-formado em psicologia pela PUC, Diego fez fila para pegar um autógrafo de Eliane Brum: "Gosto de gente melancólica". Yasmin Thainá ficou curiosa para saber como a autora gaúcha "consegue ser tão doce e ao mesmo tempo tão forte".

Nascida em Nova Iguaçu (Baixada Fluminense), Yasmin, 19, queria ser engenheira e fez curso técnico de eletrônica. Trocou pelo jornalismo, que está cursando, e pelo cinema.

"Estamos intensificando o diálogo com outros grupos, outras comunidades. Esta experiência está sendo um salto quântico", disse Mônica Márcia de Camargo, 48, uma das organizadoras dos saraus Poesia de Esquina, na Cidade de Deus.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.