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Carlos Heitor Cony

Bandidos na vida e no cinema

Os homens de minha geração admiraram os grandes gângsteres da vida real e do cinema

O gangsterismo foi uma época na vida americana e, em certo sentido, uma época na vida de cada um de nós. Acredito que cada geração teve uma fase de crimes e violências. Foi por meio dos filmes, alguns deles considerados antológicos, que tomamos conhecimento do que havia por lá.

E como ficção é sempre mais verdadeira do que a realidade, os melhores filmes não foram aqueles baseados na vida e nos episódios dos homens que se notabilizaram naquela cruzada -radical para ambos os lados- de exterminar o inimigo.

A vida de Al Capone e de Dillinger resultaram em obras medíocres no cinema. Um dos principais momentos desta fase, o massacre da noite de São Valentim, quando uma quadrilha de bandidos eliminou dentro de uma garagem a quadrilha rival, fez parte de diversas histórias onde funcionava como cena incidental, para dar um tom histórico ou temporal quase próximo a um documentário.

Mas houve um filme que penetrou mais fundo naquele morticínio, tornando-o até certo ponto no principal deflagrador da história. Para muitos críticos e admiradores do gênero, "Quanto Mais Quente Melhor", de Billy Wilder (1959), ganhou contornos de obra-prima, embora tenha resultado numa comédia geralmente citada entre as melhores do gênero.

Os homens de minha geração admiraram os grandes gângsteres da vida real e do cinema. Até hoje considero Dillinger, o chamado inimigo público nº 1 da nação americana, uma espécie de herói incompreendido, um Robin Hood do asfalto, um anjo rebelado que muito sofreu, muito pecou e a quem alguma coisa deveria ser perdoada. Al Capone não possuía o sentido romântico da vida e do crime, mais parecia um péssimo tenor italiano fazendo com realismo de opereta um papel de mafioso. Era mais um mandante, um cartola do crime, do que um criminoso propriamente dito.

Quanto ao cinema, creio que viveu uma de suas melhores fases às custas dessa enxurrada de mortos e tiros. Paul Muni (no clássico "Scarface"), James Cagney e George Raft foram nomes que marcaram uma época e até um estilo de masculinidade. Copiavam-se as broncas histéricas de Cagney, a plácida cafajestagem de Raft com seu sapato bicolor e aquela moedinha que ele jogava para cima e que foi copiada por vários atores.

Sem falar, é claro, no andar mastigado e na voz rouca de Paul Muni, num papel que continua a ser imitado mas nunca igualado.

Muitos anos depois, quando a nouvelle vague tentou fazer filmes em cima da realidade imediata, com uma câmera na mão e o vestígio de uma ideia na cabeça, estava sem saber copiando esta fase do cinema americano, onde filmes eram feitos em cima do lance, com as câmeras montadas em sólidos trilhos, mas com a cabeça menos cheia de ideias.

Bem, do menino carioca que olhava o mundo e se informava dessa violência toda, o episódio mais importante que marcou sua infância foi o rapto do filho de Charles Lindbergh, o herói (apesar de nazista) que inaugurou a rota aérea entre a América e a Europa. Acompanhei pelo jornal e pelo rádio o processo de Bruno Richard Hauptmann, o criminoso, e, já naquele tempo, a pena de morte me parecia estúpida.

No dia de sua execução, na cadeira elétrica, transmitida para todo o mundo pelo rádio, acordei no meio da noite e fiquei pensando nele. Não senti muita piedade pelo menino raptado e morto, mas não suportava aquela agonia dos julgamentos, das petições, dos adiamentos, da última ceia, dos testes da cadeira elétrica, da morte como punição. Achava -e acho até hoje- a morte muito importante, muito humana para ser utilizada como castigo.

Por esse tempo, ensinaram-me no catecismo que eu tinha uma castidade e que devia guardá-la como se guarda um tesouro muitas vezes precioso. Pois tratei de guardar este tesouro com certo exagero, e, em se tratando de tesouro, cheguei a uma perigosa conclusão: quanto mais tesouro tivesse, mais virtuoso seria.

A verdade é que não me explicaram muito bem o mecanismo desta preciosa virtude e eu passei a aumentar a minha castidade roubando-a dos outros. Havia uns bambuzais pela minha infância, uns matinhos -e eu resolvi ser mais casto do que os outros.

Transformei-me numa espécie de gângster dos bambuzais e muito me enriqueci à custa da castidade alheia. Mas isso são detalhes de uma edificante autobiografia que nunca poderá ser escrita.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Drauzio Varella

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