Índice geral Ilustrada
Ilustrada
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho

A cidade que viu o despertar de Caetano para música, cinema e pintura

MATHEUS MAGENTA
ENVIADO ESPECIAL A SANTO AMARO (BA)

A aula de história geral era sobre as grandes navegações que culminaram na descoberta da América. O professor Édio Souza detestava que seus alunos copiassem as aulas em seus cadernos. Cobrava apenas atenção.

"Foi quando eu vi Caetano [Veloso], que tinha uns 12 ou 13 anos em 1954, riscando em seu caderno sem parar. Reclamei, mas ele negou que estivesse anotando a aula. Cheguei perto e me deparei com um desenho belíssimo das caravelas Nina, Pinta e Santa Maria, de Cristóvão Colombo. Era uma obra de arte", relata Souza, hoje com 89 anos.

O gosto pelo desenho começou aos quatro anos, segundo Dona Canô, 104, mãe do artista que completa 70 anos na próxima terça.

Com pedaços de carvão, Caetano desenhava "homens, mulheres, tudo que lhe viesse à cabeça" nas calçadas da rua do Amparo, em Santo Amaro (67 km de Salvador), onde nasceu.

"Depois ele ganhou tinta e telas dos pais. A gente ajudava a carregar aquela bagulheira toda pelas ruas até ele parar e começar a pintar", conta o amigo de infância e escritor Antonio "Manteiga" Nunes de Souza, 70. Hoje as telas estão expostas em casas de amigos e familiares.

Em sua juventude na região do Recôncavo Baiano, Caetano estava constantemente em contato com diversas expressões artísticas.

Além das aulas de piano com a professora Aidil Barros e com a irmã Nicinha (ambas já morreram), ele encenava peças em casa com a irmã Maria Bethânia, dançava em festas na Sociedade Filarmônica Filhos de Apolo e no clube Uirapuru e assistia a filmes europeus no Cine Subaé.

Caetano também passava horas ouvindo rádio, seja músicas de artistas como Vicente Celestino e Orlando Silva ou radionovelas como "Jerônimo, o Herói do Sertão".

APENAS LEMBRANÇAS

Mas a cidade que viu o artista partir aos 17 anos, quando se mudou com a família para Salvador, só existe hoje nas lembranças dos moradores mais velhos.

"Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de 'La Strada' de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé. [...] Chorei o resto do dia e não consegui almoçar", relata Caetano Veloso em seu livro autobiográfico "Verdade Tropical", lançado em 1997.

Após as exibições, ele usava o piano de casa para tirar de ouvido as trilhas sonoras -a paixão pelo cinema virou ofício quando passou a escrever sobre o tema para o jornal local "O Archote".

Mas o Cine Subaé, um dos três da cidade, deu lugar a uma loja de eletrodomésticos. Hoje, Santo Amaro não tem cinemas. E o comércio ocupa também o que, um dia, foram as casas onde o artista nasceu e onde viveu até os oito anos de idade.

Tomado pelo mato, as ruínas do Uirapuru servem hoje como lixão e ponto de drogas.

"Em Santo Amaro, nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos de 'bar de Bubu'", diz um trecho de "Verdade Tropical". O local é hoje uma barbearia.

A Santo Amaro da época vivia uma "efervescência cultural incomum", segundo palavras da artista plástica Ivonete Pacheco, 64, cujo nome é citado na música "Gente".

"Nós éramos sedentos por cultura. As crianças tinham aulas de piano, acordeão, violão, recitais de poesia. Tudo se perdeu com o fim do ciclo do açúcar, na década de 60. Dali em diante, as famílias foram deixando Santo Amaro aos poucos", diz.

A população da cidade pouco cresceu desde então. Segundo o IBGE, são hoje 57.800 habitantes -em 1968, eram 52.946 moradores.

O rio Subaé, que corta a cidade, continua poluído, apesar dos apelos do músico na canção "Purificar o Subaé".

SHOW PARTICULAR

Pela fresta da janela da casa de número 179, na rua do Amparo, Maria Mutti, 63, diz que ouviu Caetano tocar pela primeira vez. "Estava passando pela casa em que Dona Canô vive até hoje quando ouvi o piano. Era Nicinha ensinando Caetano a tocar 'Recuerdos de Ypacarai'."

A música de Demetrio Ortiz e Zulema de Mirkin, citada por ela, acabou gravada pelo artista, anos depois, no disco "Fina Estampa" (1994).

Algo parecido ocorreu com a música "Diana", de Paul Anka, no álbum "A Foreign Sound" (2004), mas, nesse caso, foi a canção que entrou sorrateira na casa do vizinho.

"Foi uma das primeiras vezes que ouvi sua voz. Talvez esse contato com Caetano tenha despertado em mim o gosto pelo jazz, que não é comum numa cidade do interior", afirma o então vizinho José Raimundo Cândido, 60.

Os "shows particulares" viraram rotina. Ao passar em frente à casa do aluno, o professor Édio Souza parava quase diariamente para ouvi-lo cantar ao piano.

"Eu não me atrasava para o trabalho por causa disso... Parava ali por alguns minutos. Caetano não era um mestre, mas um amante do piano."

Hoje, o modelo alemão Ritter Halle usado pelo artista está tomando poeira num casarão em Santo Amaro.

Destino incerto, porém, tiveram gravações caseiras de Caetano com alguns de seus sete irmãos, como o disco com as músicas "Feitiço da Vila" e "Mãezinha Querida" gravadas com a irmã Nicinha.

"Tudo isso acabou, mas a memória nunca acaba", diz Dona Canô. Ou não.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.