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Crítica / Romance Linguagem lúdica marca livro notável de Sílvio Lancellotti "Em Nome do Pai dos Burros" é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura MANUEL DA COSTA PINTOCOLUNISTA DA FOLHA Em 13 de outubro de 1977, os jornais estampavam a notícia de que o presidente Geisel exonerara o ministro do Exército, Sylvio Frota, que arquitetava um golpe para reconduzir a linha dura ao comando do regime militar. Na noite do mesmo dia, o Corinthians venceu a Ponte Preta na final do Campeonato Paulista, quebrando um jejum de 23 anos sem títulos. Os dois acontecimentos balizam o romance "Em Nome do Pai dos Burros", do jornalista Sílvio Lancellotti. Toda a ação se passa nesse 13 de outubro, tendo como protagonista Marcello Brancaleone -editor culto e cínico, ávido por dinheiro, mulheres e bourbons. A grande personagem do romance, porém, é a linguagem -como sugere o título, referência à expressão gaiata que define o dicionário como "pai dos burros". Solilóquio, fluxo de consciência, diálogo teatral, ensaio, paródia de noticiário, pastiche de romances, discursos políticos, óperas e transmissões radiofônicas são os recursos estilísticos empregados por Lancellotti nesse "livro sem enredo" (como o descreve seu narrador). Some-se a isso o fato de que Brancaleone sonha escrever uma sempre adiada "epopeia brasileira" -que acabará sendo, por vias tortas, o livro que o leitor tem em mãos- e teríamos mais um elemento (a metalinguagem) para caracterizar "Em Nome do Pai dos Burros" como um romance experimental. De fato, a trama se passa nos anos 1970, a era de ouro da prosa experimental e do conto brasileiro, mas a referência de Lancellotti é muito mais ambiciosa: sua inspiração vem do "Ulisses", de James Joyce (1882-1941). IMAGINAÇÃO OPULENTA A exemplo de Joyce (mas sem propor comparações, pois seu procedimento é essencialmente lúdico), Lancellotti elege para cada capítulo um local, um horário, uma cor, um ritmo e uma parte do corpo que deveriam unificar a narrativa. O rigor dessa "partitura" verbal, porém, acaba se dissolvendo na verdadeira musicalidade do livro: uma linguagem feita de neologismos, amálgama de palavras, modulações entre baixo-calão e citações eruditas que jamais soam pedantes, pois vazadas num humor escrachado. Tudo isso ainda soa como formalismo datado? Ocorre que não é possível dar uma ideia de "Em Nome do Pai dos Burros" sem expor essa estrutura de ironias de linguagem. A maior ironia, porém, está no fato de que, ao compor um afresco da classe média intelectualizada e da alta burguesia reacionária de São Paulo à época da ditadura, Lancellotti está falando do presente. A imaginação opulenta é um convite para decifrar as citações ocultas nesse livro que contrasta com a linearidade dos dois romances anteriores de Lancellotti (sagas sobre a máfia). Citações, aliás, que incluem restaurantes e personagens da culinária paulistana que o autor, também crítico de gastronomia, não conseguiria evitar ao perpetrar a receita desse livro notável. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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