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Crítica poesia

Em novo livro, o acaso se torna experiência poética

HEITOR FERRAZ MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há uma espécie de tranquilidade e depuração do olhar nos poemas novos do carioca Antonio Cicero, reunidos no livro "Porventura".

É o terceiro em sua trajetória. Ele nunca teve pressa em publicar, e isso se explica pela sua relação com os próprios poemas. É como se a experiência não pedisse uma urgência expressiva, mas a sua maturação, no tempo, até se tornar poema. Seu primeiro livro, "Guardar", é de 1996; já o segundo, "A Cidade e os Livros", é de 2002.

No entanto, é sobre a vida que passa, sobre as experiências fugidias que seu olhar se detém e se diversifica nos poemas deste livro, que tratam desde episódios da infância, passam pela vida amorosa, comentam um acidente de trânsito, conversam com amigos presentes e ausentes, contemplam um quadro de Degas e retornam aos mitos gregos -a Grécia sempre teve uma presença privilegiada no imaginário de Cicero.

O título da coletânea corrobora a ideia: o advérbio "porventura" amarra o conjunto de poemas. A palavra, com certo sabor retórico, é usada em perguntas (no sentido de "por acaso") e traz em si o substantivo "ventura", que significa destino, acaso.

Parece que em sua poesia o momento do acaso é resgatado e transformado em experiência poética: a vida que passa se torna poema e passa a existir enquanto poema.

Essa sensação se faz forte logo de saída, em "Balanço", no qual ele lembra da infância ("não foi uma manhã de sol"), passa pelo ardor da adolescência, com a descoberta conjunta da poesia e do orgasmo, e, negando a possibilidade de ser "plenamente adulto", termina pedindo aos deuses que ao menos "façam felizes e maduros/ Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos".

Esse deslocamento entre o homem e o poema está no centro de sua poesia: o homem não amadurece, mas ao menos alguns de seus poemas, sim, inclusive "Marcelo", que se torna muito mais uma figura poética do que uma referência concreta.

Pelo menos, é o que aparentemente ele almeja, como também se pode ler em "O poeta cego", cuja fatura deve muito a Fernando Pessoa (paixão confessa de Cicero):

"Eis o poeta cego./ Abandonou-o seu ego./ Abandonou-o seu ser./ Sem ser nem ver ele verseja.// Bem antes do amanhecer/ Em seus versos talvez se veja/ Diverso de tudo o que seja/ Tudo que almeja ser".

O poeta, despido de sua existência real, torna-se algo além daquilo que ele almeja: se transforma no poema.

A linguagem de Cicero é a cotidiana, mas também nos remete ao latino Catulo (outra de suas paixões). Ou, como diz "O poeta lírico", há um "falso tom de corriqueirice", que corre o perigo de dar a tudo a mesma conotação morna, pouco vibrante da experiência vertiginosa da vida.

Não é um defeito. Talvez seja de fato um pouco a nossa condição atual, restando ao poeta carioca o olhar que busca uma Grécia ausente, como em "Meio-fio", quando, depois de uma batida banal de carro, ele aguarda a perícia; senta-se no meio-fio e olha para o horizonte: "Da Avenida/ Atlântica, a maresia,/cio marinho, alicia/ para outras eras da vida".

HEITOR FERRAZ MELLO é poeta, autor de "Um a Menos" (7 Letras)

PORVENTURA
AUTOR Antonio Cicero
EDITORA Record
QUANTO R$ 24,90 (80 págs.)
AVALIAÇÃO bom

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