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Da lama ao caos

Nuno Ramos enterra três casas no barro em mostra e se prepara para construir globos da morte

Victor Schwaner/Folhapress
Nuno Ramos na montagem de sua nova mostra
Nuno Ramos na montagem de sua nova mostra

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

Nuno Ramos está com o braço enfiado na lama. Ele testa a consistência do barro branco em que afundou uma das três casas que decidiu sepultar na mais monumental obra de sua carreira até hoje.

O artista escavou o chão da galeria Celma Albuquerque, no centro de Belo Horizonte, para enterrar réplicas das casas onde cresceu, onde seus filhos nasceram e onde mora em São Paulo, uma espécie de afundamento da memória.

Pedaços das fachadas, um telhado inteiro e o sótão de uma delas saltam para fora de três piscinas de lama.

A casa de mármore negro parece brotar de um lamaçal retinto. Outra, de areia socada, afunda no barro marrom, enquanto a branca, a maior de todas elas, lembra uma coluna vertebral de telhas que abraça os pilares da galeria num pântano imaculado.

São mais de 300 toneladas de matéria. É o peso bruto do concreto arrancado do chão, das placas de mármore e de granito e de toda a areia que compõe uma das casas.

"Tem um certo sacrifício nessa obra", diz Ramos, numa pausa na montagem da mostra que será aberta no começo de setembro, depois de um mês de quebradeira na galeria. "Queria essa situação de luta e confronto mesmo."

Ramos, aliás, tem feito de suas obras um reflexo dos confrontos que enfrentou na vida real.

Seu trabalho mais recente, o desmanche fúnebre das casas na lama, tem a ver com a morte de sua mãe há cerca de um ano e meio e seu contato com "essas coisas reais", nas palavras dele.

"É oferecer essas coisas para perder, jogar fora", diz Ramos. "Tem essa coisa de dádiva, uma troca amalucada, sem medidas exatas."

Seu sacrifício aqui é matar construções inteiras num cenário catastrófico que contrasta com a limpidez das formas, a lama plástica que reflete as luzes da galeria e a pedra reluzente das esculturas criadas para serem escombros -uma espécie de ruína calculada.

Cenário não é o termo: este é um teatro real, em que as casas afundadas têm a medida exata das que replicam.

Ramos dirige a cena mais como um engenheiro calculista do que um cineasta. Com o mesmo cálculo com que armou um viveiro de urubus na Bienal de São Paulo, fez um avião se espatifar na copa de uma árvore no Museu de Arte Moderna do Rio ou um barco de pedra-sabão encalhar no meio de uma galeria.

"A imaginação é muito autêntica, mas, no meu caso, é a matéria que põe as coisas no lugar", explica. "Nunca mexi com matéria nenhuma em sentido simbólico. Quero que a presença das coisas venha antes da interpretação."

HISTÉRICO E SOLENE

A presença, aqui, é inequívoca. Tanto que, na galeria, mal cabe o público. A cena causa espanto vista da calçada, através das janelas.

Do mesmo modo, a mostra que o artista abre no Rio, em novembro, será um espetáculo fechado. Nele, dois globos da morte cercados de estruturas de vidro e peças quebradiças ocuparão todo o espaço da galeria Anita Schwartz.

Haverá um antes -a estrutura toda montada e cercada de objetos frágeis- e um depois -o caos que segue a performance furiosa das motocicletas pelos globos metálicos.

Ramos reconhece a ambivalência entre histeria e solenidade como chave de sua obra. "Há uma dissonância que adoro ocupar", diz. "É um globo da morte de tudo, algo histérico, enquanto essa carga de silêncio que tem aqui é o que não tem lá."

Ele vê um contraste entre a fúria de seus desenhos e pinturas -obras do início da carreira carregadas de objetos que saltam das telas- e o tom mais soturno das casas afundadas e do voo dos urubus entre lápides de areia.

Em todos os casos, seria o que ele chama de "milagre físico da obra", uma poesia que afirma por trás dos aspectos visuais de seu trabalho -a transformação mesma de versos em matéria.

No caso das casas lembram as construções evocadas por Carlos Drummond de Andrade no poema "Morte das Casas de Ouro Preto". Ele refaz as casas que "morrem severas" do poeta mineiro. Tenta recriar o chão que "começa a chamar as formas estruturadas faz tanto tempo".

"Todo caos é uma reconfiguração", resume o artista. "Toda violência e destruição reconfigura outra ordem. Aqui a imaginação ganha uma dimensão corpórea."

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite da produção da mostra.

NUNO RAMOS
QUANDO abertura 7/9; de seg. a sex., das 9h às 19h; sáb., das 9h30 às 13h; até 31/10
ONDE Celma Albuquerque (r. Antônio de Albuquerque, 885, Belo Horizonte, tel. 0/xx/31/3227-6494)
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