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Livros

Estudo expõe rusgas de Buarque e Freyre

Ensaio analisa ruptura entre os autores a partir da supressão de menções ao pernambucano em 'Raízes do Brasil'

Livro inédito de João Cezar Castro Rocha identifica em Buarque de Hollanda atitude cordial que criticou

RODRIGO LEVINO
EDITOR-ASSISTENTE DA “ILUSTRADA”

Em 1936, a primeira edição de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), foi publicada pela editora José Olympio e apresentada ao público por um prefácio elogioso de Gilberto Freyre (1900-1987), curador da coleção "Documentos Brasileiros", na qual o livro se inseria.

Meses antes, o autor pernambucano lançara "Sobrados e Mucambos".

Para Freyre, Buarque de Holanda era "uma daquelas inteligências brasileiras em que melhor se exprimem não só o desejo como a capacidade de analisar, o gosto de interpretar e a alegria intelectual de esclarecer".

Vinte anos depois, quando capitaneou a terceira edição do próprio livro, o autor de "Raízes" escreveu que o volume revisto tinha "alterações que não lhe afetam essencialmente o conteúdo".

Meia verdade. As modificações feitas na segunda edição alteravam consideravelmente o conteúdo do livro e já não permitiam ao escritor afirmar que não lhe afetavam o cerne.

Ao menos é o que aponta um estudo inédito realizado pelo professor de literatura comparada da Uerj e crítico João Cezar de Castro Rocha.

Em ensaio publicado na edição mais recente da revista "Dicta&Contradicta", que se alongará em um livro a ser lançado até o fim do ano, Castro Rocha aponta (e busca entender o porquê) que, entre 1936 e 1956, três edições de "Raízes do Brasil" tiveram suprimidas de suas páginas citações ao autor e menções à obra de Gilberto Freyre (veja quadro ao lado).

A ruptura se completou em 1963, no lançamento da quinta edição. Em vez do prefácio de Freyre da estreia -cortado na edição seguinte-, o crítico Antonio Candido, ideologicamente oposto ao pernambucano, é quem tece loas à obra, em três páginas.

As razões para tanto, segundo Castro, são diversas. "Há componentes políticos, ideológicos e acadêmicos envolvidos na questão", disse ele em entrevista à Folha.

Políticos, sobretudo, porque a supressão de Freyre não alterou, em alguns parágrafos, a sua ideia original. "Ao apagar as citações e manter as teses, o autor fez uma escolha pelo distanciamento em relação ao seu antigo colega", diz Castro Rocha. Ao sumir com trechos inteiros, o distanciamento estaria selado.

CAMINHOS DISTINTOS

Segundo Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton (EUA) e estudioso da obra de Buarque de Holanda, "a razão para isso é que ele queria desesperadamente se diferenciar do Freyre na medida em que percebia no pernambucano uma guinada à direita".

Demonizado pela escola de sociologia paulistana, predominante na época, nas décadas seguintes ao lançamento de "Casa Grande e Senzala", Freyre viu suas teses não alinhadas à esquerda gradualmente deixadas ao largo.

"Buarque acabou, por causa disso, suspeito de uma proximidade que ele passou quase toda a vida tentando negar", diz Meira.

O que levou o autor da tese do homem cordial -a qual define o brasileiro como um indivíduo regido pela emoção mais que pela razão, que eventualmente varia os parâmetros éticos e evita a todo custo o embate de ideias- a sonegar as supressões feitas é um mistério.

"Ele foi um homem anticordial por excelência, mas, nesse caso, agiu como o típico personagem que definiu em sua obra", aponta Castro Rocha. Evitando, dessa forma, um debate aberto com seu contemporâneo.

Na opinião do historiador Tiago Lima Nicodemo, da Universidade Federal do Espírito Santo, estudioso da obra dos dois autores, "o que se discute nesse caso é também a relação entre o desenvolvimento de uma cultura acadêmica e universitária e a interpretação do Brasil".

As ideias de Freyre, que em 1936 pareciam interessantes a Buarque de Holanda, se tornaram, com o passar do tempo, alheias ao seu modo de interpretar o Brasil, constrangedoras até. Quando não, aproveitáveis, mas sem o devido crédito.

"O prefácio de Candido, no começo dos anos 1960, liga 'Raízes' a uma militância democrática que foi fundamental, inclusive, para ele ser mais bem aceito em alguns círculos de estudiosos paulistanos", diz Nicodemo. Grupos dos quais Freyre se distanciou ano após ano, como um degradado.

Enquanto aprofunda a sua investigação, buscando no imenso acervo disponível dos dois autores cartas ou menções às rusgas que nunca vieram a público, Castro Rocha entende que o seu estudo traz à tona uma lacuna.

"É estranho que um livro-pilar da compreensão da formação do brasileiro não tenha ganhado, até hoje, uma edição crítica". Seria o meio ideal, segundo Castro Rocha, para além do cotejo, realizar o enfrentamento de ideias a que se negaram os dois. Como fariam dois bons homens anticordiais.

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