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Crítica memória

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Relação de poeta com Freud é guia de relato sobre existência

Hilda Doolitle tratou seu "estado de deriva" com pai da psicanálise em 1933

VLADIMIR SAFATLE
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1933, a poeta norte-americana Hilda Doolittle (1886-1961) iniciou análise com Sigmund Freud.

Aos 47 anos, ex-amante de Ezra Pound, de D.H. Lawrence e com longas ligações homossexuais, Hilda passara por tratamentos psicanalíticos malsucedidos contra os seus estados melancólicos antes de encontrar Freud.

Seu encontro com o fundador da psicanálise (chamado por ela de "médico irrepreensível") será um interessante capítulo dos contatos entre psicanálise e vanguardas estéticas do início do século 20.

O encontro foi descrito no livro, agora traduzido para o português, "Por Amor a Freud: Memórias de Minha Análise com Sigmund Freud".

A obra, no entanto, não pode ser vista como um relato cujo valor se encontraria em seus detalhes clínicos e nas descrições da maneira como Freud trabalhava.

Até porque há pouco a este respeito nos dois textos escritos por Doolittle, assim como nas cartas anexadas ao final. A importância do relato encontra-se em outro lugar.

Logo ao início de seu texto, Doolittle afirma: "Eu não percebia exatamente o que queria, mas sabia que eu, como a maioria das pessoas que conhecia, na Inglaterra, nos EUA e na Europa continental, estava à deriva. Estávamos à deriva, onde? Eu não sabia, mas ao menos aceitava o fato de que estávamos à deriva".

Com essas frases, Doolittle não descreve apenas uma experiência subjetiva, mas a condição objetiva da subjetividade de uma época.

Ninguém melhor do que uma poeta para perceber que esta "deriva" não era apenas resultado da perda de horizontes substanciais de validação das condutas e julgamentos. Era o resultado da consciência paulatina da nossa incapacidade de organizar a experiência do tempo, da memória e do desejo a partir dos imperativos de unidade e identidade de um Eu compreendido como sede de nossa individualidade.

Nesse sentido, foi a sensibilidade de poeta modernista que a fez encontrar, na psicanálise, não apenas uma prática clínica capaz de dar conta desse sofrimento psíquico de deriva (que se retratava tão bem em sua sexualidade), mas uma maneira de falar de si quando se está disposto a problematizar o que se deve compreender por "si mesmo".

Ou seja, o que vemos em seu relato é a maneira com que a psicanálise apareceu, à sensibilidade moderna, como prática que trazia um novo regime do falar de si.

Regime que se encontrava com certas aspirações de reconstrução da expressão subjetiva que animava as experiências estéticas vanguardistas.

Isso talvez nos explique porque o relato de Doolittle parece mais interessado em seguir os ritmos da associação livre, assumindo um estilo de escrita que não é a totalização discursiva de uma história do indivíduo, mas da descoberta de como ele é habitado por vários tempos e experiências que parecem transbordar os limites da pessoa.

Na verdade, essa era a maneira de dizer que, em um dado momento, clínica e estética se associaram para fornecer às sociedades ocidentais um novo regime de compreensão do que somos e de como nos descrevemos.

POR AMOR A FREUD
AUTORA Hilda Doolittle
EDITORA Zahar
TRADUÇÃO Elisabeth Roudinesco
QUANTO R$ 49,90 (288 págs.)
AVALIAÇÃO bom

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