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Correia de Brito revive anos de chumbo

Em seu novo romance, o primeiro após o premiado "Galileia", escritor acerta contas com o período da ditadura

Relato autobiográfico narra angústia de um estudante de medicina acossado entre a repressão e a rebeldia

FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL AO RECIFE

O Recife em que desembarcou Ronaldo Correia de Brito no final dos anos 1960, vindo do interior do Ceará para estudar medicina, era, no dizer do próprio escritor, "um universo sombrio".

A cidade que funcionara, até a instauração da ditadura, como uma espécie de laboratório da esquerda brasileira, enfrentava, após o golpe militar de 1964, uma repressão das mais violentas, com mortes e desaparecimentos.

É nesse ambiente que se passa "Estive Lá Fora", novo romance do autor que acaba de sair pela Alfaguara, o primeiro depois de "Galileia", vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2009.

Logo na chegada ao Recife, carregando uma caixa com livros e uma mala de sola, Correia de Brito, 61, teve o impacto de dois acontecimentos: o assassinato do padre Henrique, auxiliar de dom Hélder Câmara, e o atentado contra o líder estudantil Cândido Pinto, ambos crimes atribuídos à repressão.

"Eu ficava alarmado com essas histórias. E o ambiente universitário era muito repressivo. O professor de anatomia interrompia a aula ameaçando chamar o 4º Exército para nos prender. No Recife vivia-se o horror", relata o escritor, que recebeu a reportagem em seu apartamento na capital pernambucana.

O protagonista do romance é Cirilo, um duplo de Correia de Brito. Estudante de medicina vindo do Ceará, vive acossado de um lado pelo fantasma da ditadura e, de outro, por patrulhas político-ideológicas e comportamentais da juventude da época.

"É um livro que fala das pessoas que sofriam por ser contra aquela violência, mas que já enxergavam adiante -viam os desvios da União Soviética e estavam antenadas com Praga, Paris e os EUA, mas não conseguiam expressar aquilo, porque eram reprimidas pela direita e pela esquerda", situa o autor.

Matuto, sem grana, meio hippie, intelectualizado e sensível, Cirilo é um "outsider".

Em torno da angústia do personagem é que se constrói o romance. Desde a abertura -quando surge numa ponte à beira do rio Capibaribe com ânsias suicidas de se atirar nas águas barrentas-, acompanha-se a viagem existencial do protagonista.

Neste aspecto, "Estive Lá Fora" guarda a marca da literatura psicológica de Correia de Brito, um clínico geral com formação em psicanálise.

Não à toa, é a autores pródigos em pespegar densidade psicológica à escrita que Correia de Brito recorre no romance, seja em citações ou releituras -Isaac Bábel, Hermann Broch, Franz Kafka, Bruno Schulz, Walter Benjamin, entre outros.

HORROR DAS GUERRAS

"Quando tentei construir o horror da época, não encontrei em relatos de escritores locais o horror e o niilismo que sentia. Me baseei então no horror das duas Guerras, sobretudo em escritores judeus", conta.

Outro distintivo da obra do autor, a épica sertaneja desta vez dá lugar ao que, com certa licença, poderíamos chamar de thriller urbano.

"Estive Lá fora" tem tensão, suspense, buscas -de Cirilo pelo irmão, militante clandestino da luta armada cujo personagem é inspirado em Cândido Pinto- e até uma espiã a serviço da repressão, de quem não se dará aqui mais detalhes para não entregar a trama, mas que segundo o autor foi baseada numa personagem real, Risoleta Cavalcanti Pereira Reis.

Por mais que se esquive das comparações -''Não é um livro sobre mim, mas sobre um tempo que vivi"-, está evidente que Cirilo é todo Ronaldo Correia de Brito.

Entre inúmeras coincidências, ambos foram coroinhas na infância, ambos foram professores de telecurso num sindicato de portuários no Recife, ambos alimentavam durante o curso de medicina a ambição de virar escritor.

Narrada em terceira pessoa, a história ganha força nos instantes em que Cirilo assume a voz narrativa, seja na descrição de sonhos ou em cartas para a mãe.

Casado com uma médica e pai de três filhos (o título do livro é tomado de uma canção da banda do caçula), Correia de Brito é também dramaturgo e escreve há muitos anos. Começou a aparecer nacionalmente depois de ter trabalhos elogiados pelo crítico Davi Arrigucci Jr. "Se não fosse ele, continuaria a escrever para as gavetas."

Ainda exerce a medicina, mas desconfia que já poderia sobreviver de literatura. "Não propriamente de direitos autorais, mas de atividades afins, como a venda de originais para o cinema ou o teatro, produção de textos por encomenda, criação de campanhas de arte-educação etc".

"Como escritor, dependo das chuvas e da colheita."

ESTIVE LÁ FORA
AUTOR Ronaldo Correia de Brito
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 44,90 (295 págs.)

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