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Ensaio

'Últimas Palavras' fala da vida antes da morte

Coletânea de artigos que chega ao país reúne reflexões do ateu Christopher Hitchens (1949-2011) sobre a finitude

JOHN LLOYD
DO "FINANCIAL TIMES"

Christopher Hitchens permaneceu fiel a si mesmo em seus últimos escritos.

Ele escrevia muito rapidamente. No prefácio de "Últimas Palavras", Graydon Carter, editor da "Vanity Fair", recorda um almoço em que Hitchens tomou doses de uísque antes, vinho durante e dois conhaques depois da refeição. Então voltou à revista e escreveu um texto de mil palavras perfeito em meia hora.

Por que tão rápido -e como? Em parte, porque havia muito a fazer: livros demais a ler, eventos a cobrir, amigos e inimigos a fazer e, sobretudo, longas conversas a ter.

Havia questões demais a registrar em seu arquivo mental, mais vasto e mais veloz do que o de qualquer outro jornalista na história. E ele era, acima de tudo, mais inteligente e atento às nuances que o resto do seu circuito, mais pronto a explicar, recordar, brincar, corrigir... e brigar, sempre, pelo que via como o sentido real dos fatos.

Ele fez o que seu herói George Orwell disse que queria fazer: converteu a escrita política em arte.

Sua curiosidade era ilimitada e sempre tinha um objetivo: Hitchens era um cão de caça. Quase qualquer coisa poderia dar em um artigo, pois quase qualquer coisa, se corretamente entendida e escrita, encerrava uma promessa de iluminação.

Em seu último livro, o fato central foi sua própria morte. Porém, é claro, o fim do texto também seria o fim do autor -e, portanto, ele precisou determinar regras básicas, das quais a mais importante foi: nada de autopiedade.

Mesmo sem se autocompadecer, Hitchens não deixa de refletir que a forma final assumida por sua doença, a de câncer do esôfago, foi muito torturante: quanto mais ele se aproximava do fim, mais ela o privou do uso de uma voz que tinha encantado, divertido e esclarecido pessoas em vários continentes.

"Em grande medida, em público e em particular, eu 'era' minha voz. [...] Agora, quando quero entrar numa conversa, tenho de chamar a atenção de alguma outra forma e suportar o fato terrível de que as pessoas então me escutarão 'com simpatia'."
A doença se manifestou quando Hitchens estava no auge de sua força, numa turnê de divulgação de um livro.

Ela o golpeou pela manhã num quarto de hotel. Depois, temporariamente restabelecido, soube das sombras em suas radiografias e então se deu conta de estar numa transição, como se o barqueiro Caronte o estivesse conduzindo implacavelmente através do rio Estige, não para chegar ao Hades, mas para tornar-se "cidadão do país dos doentes [...] terra bastante receptiva, à sua maneira".

Vários temas reaparecem nesses vários últimos textos (publicados originalmente na "Vanity Fair").

Um deles é uma reflexão sobre a religião, que nasce da rejeição à ideia de conversão no leito de morte: por que, Hitchens pergunta, qualquer Deus, com a onisciência que costuma lhe ser atribuída, aceitaria tal hipocrisia, tão evidentemente visando a um benefício próprio?

Sua inteligência espirituosa segue com ele até as derradeiras anotações fragmentárias. Tampouco o deixa o sentimento de que fez sucesso na arena mais competitiva do país mais competitivo do mundo -que não era o seu.

Outro grande tema é uma reflexão sobre o ditado, atribuído a Nietzsche, segundo o qual "o que não mata fortalece". Na última das muitas críticas brilhantes de clichês que fez, diz que a frase é bobagem: o que não mata, geralmente enfraquece; e, depois, em muitos casos, mata.

As pessoas que enfrentam agonias muitas vezes pedem para morrer. "Então, ficamos com algo bastante incomum nos anais das abordagens não sentimentais da extinção: não o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de já ter morrido."

O que é lamentável no fato de Hitchens ter vivido tão desregradamente é que isso podou 20 anos ou mais de sua vida de escritor.

Nem todo o mundo concordaria. A esquerda o desancou por declarar que tirar Saddam Hussein da liderança do Iraque foi uma necessidade não só estratégica mas democrática. Os religiosos se horrorizaram com seu livro "Deus Não É Grande", de 2007.

Por escrever tanto assim, Hitchens não se deu espaço para uma realização realmente grande -por exemplo, uma avaliação da esquerda mundial no último meio século. Mas ele fixou um parâmetro do que significa ser um intelectual público.

As últimas palavras do livro são uma citação de "Sonhos de Einstein" (1993), de Alan Lightman, em que o autor convida o leitor a visualizar a possibilidade de vida eterna: "Os filhos nunca escapam das sombras dos pais. Nem as filhas de suas mães. Ninguém nunca fica por conta própria... Esse é o custo da imortalidade. Nenhuma pessoa é completa. Nenhuma pessoa é livre".

Em sua mortalidade, Hitchens foi tão inteiro e livre quanto poderia aspirar a ser alguém que fez seu trabalho.

Tradução de CLARA ALLAIN

ÚLTIMAS PALAVRAS
AUTOR Christopher Hitchens
TRADUÇÃO Alexandre Martins
EDITORA Globo
QUANTO R$ 24,90 (96 págs.)

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