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'Tenho o direito de contar a minha vida'

Apesar de suas memórias ressuscitarem críticas a extremistas islâmicos, Salman Rushdie diz não temer reações

Em entrevista, escritor recorda período em que viveu escondido e conta que celebrou o fato de não ter enlouquecido

Erik S. Lesser - 25.fev.2010/The New York Times
Salman Rushdie na Universidade Emory (EUA), da qual é professor emérito, durante exposição dos seus arquivos em 2010
Salman Rushdie na Universidade Emory (EUA), da qual é professor emérito, durante exposição dos seus arquivos em 2010

DO ENVIADO A LONDRES

Esparramado numa poltrona, os pés repousados na mesinha de centro do escritório de seu agente literário, Salman Rushdie nem parecia o homem que por quase dez anos viveu escondido com a cabeça a prêmio.

Foi desse modo relaxado, mas sempre solícito, que o escritor recebeu a Folha há duas semanas para uma entrevista, a única a um jornal brasileiro, sobre "Joseph Anton".

Na conversa de 53 minutos, Rushdie disse que publicar suas memórias foi como "tirar um peso das costas".

Falou sobre o medo da morte, a relação com os policiais que o protegeram, projetos futuros, futebol e críquete. Leia, a seguir, os principais trechos.

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Folha - Por que o sr. escreveu suas memórias na terceira pessoa, e não na primeira?
Salman Rushdie - Comecei tentando escrever na primeira pessoa, mas odiei. Pareceu-me narcisístico [risos]. Não sei por que, pois escrevi romances na primeira pessoa e não tive problemas. Mas nesse livro eu realmente fiquei inquieto com isso.
Uma das razões é que eu quis que o livro parecesse romanceado. Então pensei: vejamos o que acontece se eu me puser de lado e me descrever como se fosse outro personagem. Bastou um dia para eu ver que era o correto. Foi como uma revelação.

E, de certo modo, Joseph Anton é outra pessoa...
Isso é apenas um artifício, um nome que tive de inventar. Mas a verdade é que detestei ter que criar outro nome, detestei que os policiais me chamassem "Joe". Só o usei como título do livro para mostrar às pessoas como esses dias foram estranhos.
A ideia de pedirem para você trocar de nome é algo profundo. E, para mim, isso também se conecta com o fato de meu pai ter inventado o nosso sobrenome [Rushdie é uma homenagem ao filósofo árabe-espanhol Ibn Rushd, ou Averróis]. Então, esse outro nome é inventado também. Tudo é invenção.
Eu me peguei ficcionalizando a mim mesmo.

O sr. costuma dizer que preferiria que as pessoas soubessem menos sobre sua vida e mais sobre seus livros. Mas, com suas memórias, elas saberão bem mais sobre sua vida. Como se sente com isso?
[risos] É algo que me deixa num grande conflito. Por um lado, eu sempre soube que em algum momento seria necessário contar essa história. Aqui estamos, a hora chegou.
Mas você está certo, há 20 anos eu luto com esse problema de muita gente me conhecer por causa de um fato jornalístico. Sempre achei uma inversão, uma loucura. Preferiria realmente ser conhecido como autor dos meus livros. Mas o que se pode fazer? Você não tem como evitar sua vida.
Agora que o livro está escrito, é como se tivesse tirado um peso das minhas costas. Penso em não voltar a falar nisso novamente. Se me perguntarem sobre esse período direi: "Leia o maldito livro, está tudo lá".

O livro mistura momentos de grande tensão -como o dia em que seu filho Zafar sumiu- com outros cômicos -uma peruca que não deu certo, a meditação com Allen Ginsberg, o beijo na boca de Hugh Grant. O sr. usou fórmulas da ficção para escrever suas memórias?
Não, essas coisas todas aconteceram. Apenas eu tive essa vida louca [risos]. Somente tenho senso de escritor o bastante para saber o que é engraçado e o que é amedrontador -e que é bom misturá-los.

À exceção do que o sr. chama de "Erro", com maiúscula -a capitulação esboçada no ensaio "Por que sou muçulmano-, o que o sr. teria feito de diferente em relação a hoje?
Acho que teria rejeitado abandonar minha casa. Todos que recebiam proteção eram protegidos em suas casas. E eu não estava autorizado a voltar para minha casa, e não entendia o motivo. A resposta é: porque era mais barato [para a polícia].

A todo instante no livro o sr. reitera que viver escondido é uma humilhação. De algum modo o sr. extraiu também boas coisas dessa experiência?
Foi interessante descobrir que não sou louco. Uma situação assim pode ser muito prejudicial para a mente, especialmente se ela se prolonga por uma década.
É algo danoso existencialmente ser arrancado à força do lugar onde você vive. E eu fiquei muito desequilibrado por um tempo, mas saí de tudo razoavelmente ileso.

E qual foi a chave para isso?
Duas coisas: trabalho e um grupo muito leal e próximo de pessoas, que deixaram claro que tomariam conta de mim e me ajudariam.

Amigos e policiais...
Sim, a polícia também, mas falo sobre amizade.

No livro o sr. não fala claramente do medo de morrer. Não teve medo de ser morto?
Não acho que fosse exatamente medo, era mais como uma depressão. Logo no começo, quando ouvi pela primeira vez isso [a sentença de morte], presumi que estaria morto em poucos dias. Mas é mais um aturdimento, um sentimento de desequilíbrio e de incerteza.
E eu rapidamente gostei das pessoas que me protegiam, faziam muito bem o seu trabalho. Então comecei a confiar neles, e isso amenizou o medo.

O sr. escreve que naquele tempo viveu numa "bolha". Hoje está 100% fora da "bolha"?
Passaram-se mais de dez anos [do fim da proteção policial]. A última cena do livro, quando a divisão especial vai embora, se passa em março de 2002. Desde então, eu não tenho mais polícia em minha vida. Tem sido bom.
Outra coisa que aprendi sobre mim foi como eu me reajustei rapidamente. Em dois dias já não me sentia
estranho.
Pensei: ok, provavelmente não é só comigo, provavelmente significa que seres humanos têm desejo por normalidade, pela vida comum, temos necessidade de sentir que o mundo é... banal, que o mundo é o que é -não é extraordinário, nem bizarro, nem surreal. Nós queremos viver este mundo.
Houve até uma certa distorção, algo meio cômico, de me pegar feliz esperando na fila de um supermercado.

O livro revolve temas muito sensíveis e que, embora atualíssimos, de modo específico estavam meio adormecidos, como suas críticas ao aiatolá Khomeini. Que reações espera dos que ameaçaram o sr. no passado?
Eu não me importo. Essa é a história da minha vida e tenho o direito de contá-la.
A tática desses grupos extremistas é criar medo, que significa não fazer o que é perfeitamente natural fazer. Não podemos nos permitir pensar assim. Não podemos dar a eles tanto poder. Temos que dizer que [publicar esse livro] é algo completamente legítimo. É a história da minha vida, não falsifiquei nada. Isso foi o que aconteceu.

NA INTERNET
Leia a íntegra da entrevista
folha.com/no1154648

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