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J.K. Rowling para adultos

Após vender 450 milhões de cópias de "Harry Potter", J.K. Rowling lança seu primeiro e aguardado livro adulto

Chiba Yasuyoshi - 13.ago.2012/France Presse
Cartaz sobre "The Casual Vacancy" na última Bienal de São Paulo, em agosto
Cartaz sobre "The Casual Vacancy" na última Bienal de São Paulo, em agosto

DECCA AITKENHEAD
DO "GUARDIAN"

O novo romance de J.K. Rowling chega com a pompa e o segredo de Estado de um nascimento na família real. A data de lançamento foi anunciada em fevereiro, e em abril o nome do livro, "The Casual Vacancy" (A vaga acidental), virou notícia internacional.

A rede de livrarias Waterstones prevê que será a ficção mais vendida do ano. Críticos escrevem sobre o que acham que vão pensar de um livro que ainda não leram.

Preciso assinar mais documentos do que aqueles necessários para comprar uma casa antes de ler a obra, sob segurança rígida, na sede da Little, Brown em Londres.

Sou instruída a jamais revelar a localização do escritório de Rowling em Edimburgo, na Escócia.

A simples perspectiva da entrevista assume a aura de uma audiência com a rainha -mas, como se sabe, Rowling é muito mais rica que ela.

Nos 15 anos desde o primeiro "Harry Potter", Rowling passou de uma ruiva desarrumada que escrevia em cafés a uma loira elegante, irreconhecível por trás de um brilho de riqueza e controle.

US$ 1 BILHÃO EM LIVROS

Ex-mãe solteira e sem dinheiro, ela foi a primeira pessoa a ganhar US$1 bilhão com livros, mas suas aparições sugerem frieza e distância. Lembram menos a Cinderela e mais a Rainha da Neve.

Muitas vezes, pareceu não gostar do seu conto de fadas, tendo contratado advogados mais de 50 vezes para defender sua privacidade e processado um fã por criar uma enciclopédia de "Harry Potter".

Quem tem fama de controlador em geral é megalomaníaco ou busca proteção. Descubro em qual categoria Rowling se enquadra quando sua agente liga uma hora antes do encontro.

Uma exigência de última hora? Não: Rowling está em sua sala há horas e quer mudar de ares. Eu as encontro no saguão de um hotel.

Calorosa e animada, bate papo tão livremente que a assessora lhe pede para abaixar a voz. "Não posso ficar animada e cochichar!", diz.

Quando comento que adorei o livro, ela ergue os braços. "Estou tão feliz! Isso é incrível. Obrigada!" Qualquer um que a ouvisse a tomaria por uma escritora iniciante encontrando seu primeiro fã.

De certo modo, é. Ela vendeu mais de 450 milhões de cópias de "Harry Potter", mas seu primeiro romance para adultos é diferente em tudo -a não ser que se considere o lugar onde teve a ideia.

"Preciso estar num veículo para ter uma ideia decente", ela ri. Tendo idealizado Harry Potter num trem, "desta vez estava num avião. E pensei: eleição local! Tive aquela reação física que vocês tem diante de uma ideia que sabe que funcionará".

MORTE

A história começa com a morte de um membro da Câmara do vilarejo de Pagford, na Inglaterra. Barry passara a infância no conjunto habitacional The Fields, gueto rural decadente com o qual a tradicional classe média de Pagford perdeu a paciência.

Se ela conseguir pôr na vaga de Barry um vereador que também rejeite o conjunto habitacional, conseguirá uma maioria de votos para transferi-lo ao município vizinho.

O presidente do conselho presume que a vaga ficará com seu filho. Opõem-se a ele um frio clínico geral e um vice-diretor de escola paralisado pela ambivalência em relação ao filho, cuja subversão consiste em contar a verdade. O adolescente fica fascinado por The Fields e sua família mais notória, a Weedon.

Terri Weedon é uma prostituta que tenta se livrar do vício em drogas para não perder os benefícios sociais do filho de três anos.

A maior parte dos cuidados ao menino cabem à filha adolescente de Terri, Krystal. Esta só teve um aliado adulto na vida, Barry, e fica à deriva com a morte dele.

Quando mensagens anônimas surgem no site da Câmara, Pagford mergulha num misto de paranoia e tragédia.

Os aspectos cômicos de Paghford servem como parábola sobre a política nacional.

"Acho interessante a pressa da sociedade em julgar", diz Rowling. "Todos conhecemos a injeção de ânimo do ato de condenar. No curto prazo, satisfaz, não?" Mas exige olhos fechados para os horrores sofridos pelos Weedon, e o livro satiriza as elites que supõem saber o que é melhor para todos.

"Quantos de nós conseguimos abrir nossas mentes para além de nossa experiência? A ideia de que outros possam ter experiências tão diferentes da nossa que suas escolhas sejam também diferentes é algo que gente inteligente não consegue entender. Pobres são avaliados como se fossem uma massa homogênea, um mingau."

"Tem havido uma mudança de ares horrivelmente familiar [desde a eleição de 2010 no Reino Unido], como no início dos anos 1990, quando houve redistribuição de benefícios e famílias de mãe ou pai solteiros ficaram em situação um pouco pior. Mas, quando se está nessa situação, mesmo dez libras semanais fazem diferença."

Como tantos romances britânicos, "The Casual Vacancy" é sobre classes sociais. "Somos uma sociedade esnobe", Rowling diz, "e isso é um aspecto rico. A classe média é engraçada; é a classe que conheço melhor e na qual vemos mais pretensão."

O livro é tão divertido que só se percebe na metade dele que cada personagem é monstruoso.

Escrito desde vários pontos de vista, convida o leitor a entrar na cabeça de cada um deles, esclarecendo coisas que, vistas de fora, parecem indesculpáveis.

PASSADO

Rowling cresceu numa comunidade similar a Pagford. "Lembro como foi ser adolescente, e não foi uma época feliz. Nada que você pudesse me dar me convenceria a ser adolescente de novo. Odiei. Não era boa em ser jovem."

Ela tinha 15 anos quando a mãe recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla. Ela e sua irmã mais nova, Dianne, tinham um relacionamento difícil com o pai, e Rowling "não via a hora de sair de lá".

Estudou francês e letras na Universidade de Exeter, foi trabalhar para a Anistia Internacional em Londres, perdeu a mãe aos 25 e foi dar aulas de inglês no exterior, voltando aos 28 com uma filha de seis meses após um casamento catastrófico com um jornalista português.

Sem dinheiro, com ideias suicidas, mudou-se para Edimburgo e sobreviveu de benefícios sociais enquanto escreveu o primeiro "Harry Potter". Após rejeições, o manuscrito foi comprado pela Bloomsbury por 2.500 libras (cerca de R$ 8.200).

Um documentário de 2007 a mostra dez anos mais tarde, com riqueza e fama inimagináveis. Há uma tensão em seu rosto e um tom irônico-agressivo em suas falas.

Nada disso é perceptível hoje. Pergunto a ela se foi preciso tempo para o DNA emocional de sua juventude passar pela mutação para corresponder a sua nova vida.

"Durante anos me senti numa esteira ergométrica psicológica, tentando correr para alcançar o lugar em que estava. Não conhecia ninguém para quem perguntar 'como você fez?'. Era desorientador."

Além da terapia, quem a ajudou foi Neil Murray, médico com quem casou em 2001 e com quem tem dois filhos.

Para ela, hoje seu mundo emocional está conciliado com a realidade. "Sou a autora mais livre do mundo."

Cito palavras dela de uma entrevista de 2005: "A primeira coisa que escrever pós-'Harry' pode ser horrível, mas as pessoas a vão comprar. Então você fica com essa insegurança.'" Rowling concorda com a cabeça. "Esse era meu pior pesadelo. Haveria uma guerra de lances pelo livro, e eu ficaria com quem tivesse a carteira maior, que compraria o livro pelo fato de eu ter escrito 'Harry Potter'."

"Mas tive sorte com isso, porque encontrei David Shelley, meu editor agora, sem que ele soubesse que havia um livro. Mencionei o que eu talvez tivesse, sem dizer que estava quase concluído. Não houve leilão. Foi uma ótima maneira de achar um editor."

Rowling teria algo artístico a comprovar? Alguns críticos desdenharam "Harry Potter" -"Em uma única página do primeiro livro", Harold Bloom lamentou, "conto sete clichês". Pergunto se Rowling escreveu o livro adulto para provar algo a esses críticos. Ela suspira. "Acho que não conseguiria fisicamente escrever um romance por esse motivo."

Tradução de Clara Allain

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