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Marcelo Coelho

Paisagens de ponta-cabeça

A cidade mais paisagística se afasta, quase como uma miragem, para algum lugar do futuro

Nunca fico enjoado de ver fotos do Rio, ainda que sejam mais ou menos as mesmas: o pôr do sol em Ipanema, o Cristo Redentor entre as nuvens, o Pão de Açúcar.

Basta-me que os morros e as praias estejam lá, e de resto nunca são exatamente iguais. Cada nuvem, cada reflexo, cada gradação de cor, no tempo bom e no tempo feio, recria a paisagem, como se um novo artista a tivesse desenhado de novo.

Mas admito que os ângulos não variam muito. Desde o século 19, a ideia é mostrar os morros se esparramando em direção ao mar, e a visão panorâmica prevalece, como um cenário à espera de Deus.

A fotógrafa Claudia Jaguaribe conseguiu o impossível. Nas imagens de "Entre Morros", livro recém-lançado pela Cosac Naify, o Rio se descobre em ângulos nunca vistos. O que era cenário se torna o próprio drama, em fotos que abandonam, quase sempre, o olhar alargado, amplo, horizontal.

O próprio livro, ao contrário da maioria das publicações de fotografia, que tendem para o quadrado, é comprido e vertical como um prédio de apartamentos.

Quem vê as fotos tem de educar os olhos para conduzi-los de baixo para cima, em vez de simplesmente abarcar o panorama, como faz quem está diante de uma paisagem comum.

De baixo para cima, o que se enxerga é uma realidade bem pouco cenográfica. Em primeiro plano, muitas vezes Claudia Jaguaribe mostra uma criança pobre. Atrás da criança, conforme vamos subindo os olhos pela foto, estão as lajes e caixas d'água de uma favela que se multiplica, em minúcias de brinquedo, até perder-se de vista.

Mas é aí, bem no alto da foto, que a vista clássica do Rio aparece: um cocoruto de praia, a menção ao morro da Gávea, o postalzinho do Pão de Açúcar. Como a fotógrafa é filha de um famoso cientista social, Hélio Jaguaribe, talvez não seja deslocado enveredar por interpretações meio sociológicas.

Em primeiro lugar, é como se essas fotos invertessem a proporção habitual das cenas cariocas. Em vez de mostrar a praia e os morros em primeiro plano, com a favela escondida no fundo, atrás dos prédios, Claudia Jaguaribe faz como que a "correção estatística" desse tipo de imagem.

Oitenta ou noventa por cento da foto corresponde às favelas, e só uma parcela pequena da imagem (não por acaso, a que fica no topo) segue o figurino turístico.

Ao mesmo tempo que a foto corresponde à "realidade sociológica" do Rio, desperta uma forte sensação de irrealidade em quem a vê. É que, em alguns casos, a câmera parece ter sido colocada em lugares impossíveis, e a continuidade do espaço se quebra.

Imagina-se que, num pedaço da fotografia, a lente está mirando quase que no rumo do chão. Em outro pedaço, as costas da fotógrafa se endireitam, e ela passa a ver o que tem à frente, e não mais a seus pés.

Não entendo de técnica para perceber se isso é simplesmente feito graças à montagem de várias fotos ou por alguma artimanha mais complexa. Seja como for, isso traz uma espécie de dimensão temporal ao que se apresentava como imagem de um único instante. Mesmo em fotos que são pura paisagem, sem gente pobre por perto, esse efeito aparece.

É assim que, numa imagem de Ipanema, primeiro vemos o mar, quase negro, a pique. Conforme subimos o olhar para o alto da página, também o ângulo da câmera se levanta, e a massa dos prédios aparece quase de frente, com as janelas veladas de sombra. Já mais em cima, "desenhada como se fosse no vidro", para lembrar o que Paul Claudel escreveu sobre o Rio, a altura do Corcovado se afasta.

Talvez seja esse o sentido do livro de Claudia Jaguaribe: a cidade mais paisagística se afasta, quase como uma miragem, para algum lugar do futuro. É, sem dúvida, a perspectiva de quem mora nos morros. Algum dia, talvez não tão distante, todo mundo chega lá.

A sensação de que, apesar de tudo, diminuem as distâncias sociais no Brasil não deixa de estar no ar. Claudia Jaguaribe olha-as de frente, e mostra o quanto de espaço ainda existe para ser vencido.

P.S. - Cometi um erro de português em artigo anterior. Escrevi: "Os argentinos estão fazendo filmes bem melhores do que nós". O certo seria: "bem melhores do que os nossos". Ou então: "bem melhor do que nós". De correção em correção, um dia tudo se acerta.

coelhofsp@uol.com.br

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