Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Álvaro Pereira Júnior

Os tapeceiros de "Argo"

Comparar o filme vencedor do Oscar com a reportagem da "Wired" que o inspirou é uma aula de narrativa

Acho que estou meio atrasado nessa, mas se você se interessa por roteiros de cinema, tenho uma proposta: além de ver "Argo", Oscar de melhor filme, que tal ler a reportagem da revista americana "Wired" que o inspirou? Fácil, aqui: http://goo.gl/f1xbr. Em inglês, infelizmente, mas o esforço compensa.

Cotejar fato e ficção vale por uma aula de narrativa hollywoodiana. Detalhes que, no artigo original, não mereceram mais que três linhas viram elementos cruciais do roteiro. Momentos anticlimáticos da vida real são puro suspense na versão para as telas. Situações são inventadas para que o espectador mergulhe de fato na história.

Podem-se criticar as liberdades tomadas pelo roteirista, Chris Terrio. Mas não as vejo como falsificações históricas. São artifícios legítimos para impulsionar a narrativa. O filme não é um documentário. Apresenta-se como "baseado em fatos reais". Não engana ninguém.

Para quem ainda não viu, vai aqui um resumo, com o alerta de que entrega um pouco do final.

Irã, 1979. Os seguidores do aiatolá Khomeini, recém-instalados no poder, invadem o complexo diplomático dos EUA em Teerã. Disparando uma crise que duraria 444 dias, fazem reféns 52 funcionários, equipe completa. Ou quase, porque seis americanos conseguiram escapar. Trabalhavam em um prédio anexo que tinha saída direta para a rua.

"Argo" e a reportagem de Joshuah Bearman, na "Wired", contam a história dos esforços de espionagem para tirar do Irã esses fugitivos, hospedados secretamente na casa do embaixador do Canadá.

Um agente da CIA, Tony Mendez, entra no Irã se fingindo de produtor de um filme de ficção científica em busca de locações no país. Enrola uns dias na capital e, na hora de sair, traz consigo os fugitivos, dizendo que faziam parte de sua equipe. Será que vai colar?

A história real, de tão delirante, é daquelas de bater o olho e decretar que daria filme. Mas, do ponto de vista de roteiro, tem um problema grave: o final chocho. A saída do país foi fácil. Ninguém no aeroporto deu muita bola para os gringos. Embarcaram tranquilos.

Agora, tente se imaginar no lugar do roteirista de "Argo". Ele lê o texto da "Wired" e pensa: OK, história saborosa, mas só até certo ponto. Como imprimir ritmo e suspense à parte final?

Aí entra, a meu ver, a grande sacada do filme. A reportagem cita de passagem a convocação, pelos invasores da embaixada, de crianças tapeceiras. Acostumadas a lidar com fios que, unidos, fazem surgir os desenhos complexos da tapeçaria persa, foram chamadas para tentar reconstruir documentos que os americanos, às pressas, tinham picotado no começo da confusão.

O que era só um detalhe na história verdadeira acaba brilhando no roteiro de "Argo". Em cenas espalhadas pelo filme, surge a molecada tentando juntar os pedacinhos de papel, como fios de um tapete. E não são documentos quaisquer, mas as fotos dos funcionários americanos, para conferir se todos estão mesmo nas mãos dos sequestradores. Se aparecer um retrato de alguém que não está na embaixada, é porque conseguiu escapar. Precisa ser capturado.

O roteiro amarra tudo isso maravilhosamente no segmento final, o chamado "terceiro ato". Os meninos tecelões estão prestes a reconstruir uma foto. E se for de um dos fugitivos? E se ficar pronta bem na hora em que ele estiver tentando passar na imigração do aeroporto?

Na vida real, a ação dos tapeceiros mirins não teve tanta importância. No roteiro, ganhou força e poder de condução narrativa. Funciona como "lifeline", linha de apoio. Ainda que o espectador perca interesse na história principal, espera-se que o fato de o filme sempre voltar para aqueles meninos vá intrigá-lo e prender sua atenção. Os garotos vão mesmo reconstruir as fotos? E, se conseguirem, para que isso vai servir?

Os minutos finais são os mais exasperantes, nada a ver com o anticlímax da história real. Na ficção de "Argo", a passagem dos fugitivos pelo aeroporto é um desespero, cheia de percalços. Culmina com uma perseguição eletrizante mesmo para quem já tinha lido a reportagem e sabia o final (meu caso).

Patriotada americana, conspiração pró-CIA etc. Os críticos movidos só por ideologia podem atirar todas essas pedras em "Argo". Só não podem negar o ritmo e a consistência do roteiro. No arcabouço do cinema comercial de Hollywood, difícil fazer melhor.

cby2k@uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página