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Entrevista Jards Macalé

Quero viver mais 70 para consertar as merdas que fiz

Ao completar sete décadas, cantor diz que deveria ser tombado, "mas de pé", e critica "aparelhamento" no ministério da cultura

MARCO AURÉLIO CANÔNICO DO RIO

Jards Macalé já comeu muito da farinha do desprezo.

Aos 70 anos, completados hoje, o autor de "Vapor Barato" (com Waly Salomão) se alegra com o reconhecimento das novas gerações e diz, jocosamente, que "deveria ser tombado" como patrimônio imaterial.

Mas não espera muito do Ministério da Cultura ("É uma tristeza, aparelhamento político"), por onde passaram recentemente seu amigo Gilberto Gil e sua ex-namorada Ana de Hollanda, com quem está brigado (e não comenta).

Macalé recebeu a Folha no quarto e sala alugado em que vive, numa ladeira do Jardim Botânico (zona sul do Rio).

Quando a reportagem chegou, ele assistia a um documentário sobre o geógrafo Milton Santos (1926-2001), um de seus exemplos de livre pensar. "O pensamento independente é o que importa. Seja no nível político, seja no da arte, que é onde atuo."

Carioca da Tijuca, celeiro de músicos na zona norte do Rio ("Tem Villa-Lobos, Tom Jobim, Erasmo Carlos, Tim Maia. Somos uma turma forte"), tem trajetória ímpar. Da formação erudita, à qual somou samba, jazz e bossa nova, caiu na psicodelia movida a drogas dos anos 1960 e 1970. Foi vanguarda e tradição.

Para celebrar o aniversário, faria show ontem, no Rio. No dia 10 toca em São Paulo, no Auditório Ibirapuera, quando será exibido o documentário "Jards" (2012), de Eryk Rocha. Quer mostrar nos shows uma parceria inédita com Caetano Veloso, composta quando visitou o baiano no exílio em Londres, para ajudá-lo a gravar o célebre "Transa" (1972).

As comemorações incluem também o relançamento de seu primeiro compacto, "Só Morto" (1970), de quatro canções, que sai em março pelo selo Discobertas com dez faixas adicionais, ao vivo.

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Seu primeiro compacto, "Só Morto" (1970), está sendo relançado. Como ele aconteceu?

Depois da apresentação de "Gotham City" [no 4º Festival Internacional da Canção, em 1969], o João Araújo, que era diretor artístico da RGE, me convidou para fazer um compacto duplo. Chamei o pessoal das bandas Som Imaginário e Soma, toquei duas músicas com voz e violão e fizemos o compacto. Mal gravado, horroroso, um negócio terrível. Mas a capa é ótima.

Esse disco não repercutiu?

Não, foi lançado ao léu. Naquela época já tinha essa coisa de eu ser um bicho raro, um estranho no ninho, depois daquela apresentação maluca de "Gotham City", que o Maracanãzinho em peso vaiou. Não teve ninguém que batesse palma. Foi unânime, e, como toda unanimidade é burrice, depois eu disse: 'Pô, mas isso aqui foi o máximo'. Eu e o Capinam, os autores, fomos dormir anônimos e acordamos famosíssimos.

E como um músico de formação erudita chegou ao rock?

Fui morar em Ipanema nos anos 1950 e 1960, entre a bossa nova e o rock. Caí nos modismos, cheguei a ir ao Leblon quebrar o cinema por causa de Bill Haley [sucesso com a canção "Rock Around the Clock", que virou filme musical em 1956].

Ouvia Elvis Presley, uma maravilha de cantor, fora o rebolado, que eu brincava de imitar. Aí cheguei a Little Richards, Chuck Berry, e fui andando pelo rock, o que me levou ao melhor, Jimi Hendrix. Ele é o ápice que ultrapassou a medida do rock com aquela guitarra.

Como foi seu trabalho em discos simbólicos como "LeGal" (1970) e "Transa" (1972)?

Foi um período riquíssimo. Quando Caetano e Gil foram presos, Gal ficou como uma espécie de porta-voz, rompeu com aquela timidez dela, foi um negócio incrível. O "LeGal" foi uma coisa mais formal, menos louca, mas é um belíssimo disco. E a capa é do Hélio Oiticica [1937-1980].

Para o "Transa", ensaiamos à beça e fizemos o disco quase ao vivo. Havia vontade de fazer algo muito bom. O primeiro ensaio à vera foi num dia lindo de primavera, quando fomos fazer um piquenique e tocar num parque, com umas moças maravilhosas. Diante do quadro que estava aqui, era o paraíso.

Tem alguma faixa dele de que você goste mais?

Gosto muito de "Nine out of Ten" e "Mora na Filosofia". Agora, a melhor coisa que vejo no disco e que adorei ter gravado foi "Triste Bahia". Ali fizemos um arranjo bacana.

As drogas tiveram papel central na criação nesse período?

Talvez sim, pelo jeito de escrever, uma coisa menos preciosista. É claro que influenciou na produção, mas acho que foi mais experimentação pessoal. Eu, por exemplo, me apaixonei pela Branca de Neve em Londres, no museu [Madame] Tussauds. Foi um tempo interessante, de experimentação. Foi engraçado e perigoso. Muita gente não voltou. Essa foi a tragédia.

Como você se ligou à turma das artes plásticas?

Foi via Hélio Oiticica. Quando o conheci, ele sacou meu violão, sacou aquelas tentativas que eu, Waly e Capinam fazíamos. Também tinha amizade com Rubens Gerchman [1942-2008].

Entrei naturalmente nessas artes de que participei e participo. Aspectos de cinema, teatro, artes plásticas, dança e música se encontraram em mim. O que interessa é estar cada vez mais independente na ação artística.

Essa independência traz muitos aborrecimentos?

Só traz. Mas é preciso criar uma força de pensamento independente. Meus exemplos são José Oiticica [1882-1957], avô do Hélio, ele próprio, Milton Santos [1926-2001], Darcy Ribeiro [1922-1997]. Temos casos maravilhosos de gente que pensava livremente, para não ficarmos atados a esse pensamento cristalizado e louco. Milton diz algo genial: o fundamentalismo real é esse consumismo exacerbado, essa tara de ter coisas.

Passaram pelo Ministério da Cultura duas pessoas próximas de você, Gil e Ana de Hollanda. Como viu a atuação deles?

Não quero falar disso. O MinC é uma tristeza, aparelhamento político. Não vou elogiar nem um nem outro. Gil é meu amigo, a outra já não é. Confrontar o melhor e pior eu não sei. Gil avançou mais. Estou adorando essa coisa de bem imaterial. Imaterial é comigo mesmo, eu deveria ser tombado. Tentam tombar de outra forma, mas quero ser tombado de pé.

Você já brigou muito por causa dos direitos autorais.

Direitos autorais aqui são uma esculhambação, vários entram nisso e ficam se dando bem com cargos. Esses interesses, rapaz, são tão... Olha, dinheiro, di-nhei-ro é o mal da humanidade. Enquanto houver isso, essa ganância, a humanidade está perdida. Onde houver dinheiro, não há relação humana limpa. Ele estraga tudo.

Nos últimos anos, você foi tema de dois documentários, teve discos relançados. Está ganhando reconhecimento?

Não sei, começaram a me medalhar há um tempo. Ganhei medalha na Câmara dos Vereadores, um negócio da ONU pela defesa dos direitos humanos. Mas não sei se nego está me reconhecendo mesmo ou me sacaneando (risos). Não é possível que seja de verdade.

Mas e o reconhecimento da nova geração?

Acho até natural que a nova geração esteja me buscando como informação nova. Fiz uma banda só de jovens, com eles troco informação de música. Outro dia um deles falou no Facebook: "Tocar com Macalé é como tocar com Miles Davis". Morri de vergonha, onde já se viu [pausa]. Sou melhor do que Miles Davis, sou brasileiro, porra! Isso sim é reconhecimento.

Como é chegar aos 70 anos?

Ótimo, estou feliz da vida. Quero viver mais 70 para consertar as merdas que fiz. E fazer coisas boas.

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"Não vou elogiar nem um nem outro [ex-ministro da Cultura]. [Gilberto] Gil é meu amigo, a outra [Ana de Hollanda, ex-namorada de Jards] já não é. Confrontar o melhor e o pior eu não sei. Gil avançou mais. Tô adorando essa coisa de bem imaterial. Imaterial é comigo mesmo, eu deveria ser tombado"

"Direitos autorais aqui são esculhambação, vários entraram nisso e ficam se dando bem com cargos, com essa discussão. Esses interesses são tão... Olha, dinheiro, di-nhei-ro é o mal da humanidade. Enquanto houver isso, essa ganância, a humanidade está perdida"


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