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Minha história Anamaria Boschi, 34

Para chinês ver

(...)Eu imaginava que o censor seria um agente do DOI-Codi. Mas não, o cara entendia de cinema

ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO

RESUMO Radicada na China há dois anos, a produtora Anamaria Boschi, 34, organiza o 2º Festival de Cinema Brasileiro na China, que vai até 4/12.

O censor do regime comunista vetou "Uma Noite em 67" e "Dzi Croquettes", ordenou cortes em "Linha de Passe" e aprovou longa em que mulher tritura (de fato) o marido.

Universitários locais foram recrutados para fazer as legendas.

Deixei São Paulo dez anos atrás, aos 24, para morar em Londres. Tinha acabado de me formar em Rádio e TV.

Foram oito anos na Inglaterra, onde organizei o Discovering Latin America Film Festival, uma mostra de filmes latino-americanos.

Em 2009, ficou difícil achar emprego. Eu era funcionária de uma emissora, mas com contrato temporário.

Foi nessa época que surgiu a possibilidade de vir a Pequim. Não pensei duas vezes. Em uma semana, já estava trabalhando na China Radio International. Traduzia matérias do inglês para o português, o que ainda faço, na agência de notícias Xinhua.

Já sei pedir informação, falar com o taxista, xingar, perguntar o preço das coisas. Mas, para ler jornal, teria que conhecer 3.000 caracteres. É uma loucura.

No ano passado, ao saber que eu tinha organizado festivais de cinema em Londres, a Brapeq (organização Brasileiros em Pequim) me chamou para fazer a curadoria do 2º Festival de Cinema Brasileiro na China.

Resolvemos apresentar a ideia ao governo chinês, que cede as salas de cinema, mas fica com a bilheteria.

Tive, então, uma série de conversas com um censor chamado Liu Chun, da Divisão de Cooperação Internacional. Ele veta os filmes que desagradam o governo.

Eu estava esperando encontrar um agente do DOI-Codi [órgão repressor do regime militar brasileiro (1964-1985)]. Mas não: o cara entendia muito de cinema, era esclarecido, doce, frequentava festivais na Europa. Entreguei 18 filmes, sabendo que só poderia exibir sete ou oito.

O "Linha de Passe" (de Walter Salles e Daniela Thomas) eles toparam, com a condição de que eu editasse as cenas em que os personagens se drogam.

"Uma Noite em 67" (de Ricardo Calil e Renato Terra) deve ter sido proibido por uma questão política, porque mostra os festivais de música dos anos 60, que eram o único lugar onde se podia gritar contra o regime militar.

"Dzi Croquettes" (de Raphael Alvarez e Tatiana Issa) eu sabia que não ia passar. Tem três temas sensíveis: Aids, homossexualismo e ditadura. Mas autocensura é broxante; resolvi arriscar.

Mas até que foram abertos. Aprovaram "Malu de Bicicleta", que tem cenas de sexo, e "Reflexões de um Liquidificador", em que a personagem tritura o marido. E permitiram que os filmes censurados passassem em centros culturais, fora do circuito.

A partir daí, comecei a organizar o festival. Como não tive tempo de inscrevê-lo na Lei Rouanet [que ajuda a bancar mostras de cinema brasileiro no exterior], tudo foi financiado com dinheiro privado ou na base da camaradagem. A embaixada bancou o coquetel de abertura.

Formei um júri com cinco pessoas para escolher o melhor filme. Uma delas é o Raymond Zhou, crítico de cinema do jornal "China Daily".

Para fazer as legendas, bati na porta da Beijing Film Academy (academia de filmes de Pequim) e recrutei alguns alunos. Fiz a mesma coisa na Universidade de Pequim, com os estudantes de português.

Não foi difícil convencê-los. Os chineses são uns fofos, querem treinar. Em troca, ofereci um certificado. Acho que vou ter prejuízo, mas topei pelo desafio de fazer um festival na China. Com os garotos que fazem legendas, tenho que falar como se fala a uma criança. Às vezes, queria ter uma câmera para filmar.

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