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Arquivo aberto

memórias que viram histórias

O segredo de Carlos Cachaça

Rio, 1987

ALVARO COSTA E SILVA

Da estação de Mangueira, na linha de ferro da Central do Brasil, eram poucos passos até a entrada da viela no fundo da qual morava Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça (1902-99). Ainda ao nível do asfalto, mas nas estranhas do Buraco Quente, o mais populoso bairro do morro.

Apesar da agitação dos sábados no início da tarde, horário dos encontros, a casa estava sempre tranquila como o dono. Ele me recebia de pijamas elegantes e limpos, chinelos Charlot e um sorriso tímido. Na pequena varanda pintada de verde e rosa, repousava um cacho de bananas. Sentávamos no sofá da sala, e eu logo ligava o gravador. Na parede o retrato da primeira formação da ala de compositores da Estação Primeira, Carlos Cachaça ao lado do amigo, parceiro, compadre e concunhado Cartola.

Um ano antes, 1986, publiquei na revista "Ele&Ela", entre o nu artístico e o fórum com fantasias sexuais dos leitores, um longo perfil do compositor, cuja história, àquela altura de seus 85 anos, confundia-se com a de Mangueira.

Afilhado do português Tomás Martins, dono de parte daquelas terras, com oito anos Carlinhos cobrava para ele o aluguel dos primeiros barracos construídos no lado do morro que dava para a estrada de ferro. Começou a trabalhar na "soca", que é ajustar os dormentes no canal do trem, e fez carreira na Rede Ferroviária Federal. Para quem carregou nos ombros o peso de um apelido desses --Cachaça, pois podia beber até duas garrafas numa festa--, é paradoxal a carreira exemplar de 40 anos, sem faltar um dia. Aposentou-se em 1965 e a partir de então passou a beber só cerveja.

Não fundou a Mangueira porque estava trabalhando quando a turma --os arengueiros Satur, Massu, Zé Espinguela, Euclides, Abelardo da Bolinha e poucos outros-- se reuniu para assinar a ata, no dia 28 de abril de 1928. Mas ligou-se unha e carne a outro fundador, Cartola, com quem compôs os mais importantes sambas da primeira fase da escola. Fazia a letra e o parceiro, a melodia.

Nossos papos destinavam-se a um livro, jamais escrito (as gravações se perderam), e o nome de Cartola, morto em 1980, aparecia a todo momento. "Seu" Carlos contou que volta e meia sonhava com ele e, dormindo, continuava a compor com o amigo.

Até que perguntei sobre o sumiço de Cartola, episódio ainda hoje não esclarecido. Sabe-se que, no início da década de 50, o compositor afastou-se de Mangueira e largou a música. A cortina de silêncio tinha nome de mulher: Donária. Um período que durou seis anos, no qual ele bebeu muito, lavou e guardou carros na rua, esteve à beira da morte, e teria até se envolvido com drogas, crime e contravenção.

"Sei de tudo, vi tudo, mas não posso contar. Dos antigos amigos do morro, fui o único a estar com ele nessa época dura. Mas ele me pediu e eu prometi nunca contar nada do que se passou. Se você insistir em saber, acaba aqui nossa conversa", me avisou Carlos Cachaça.

Ao voltar, Cartola era outro, mais sofrido, mais sofisticado, leitor de poetas parnasianos, pronto para compor, sozinho, as suas obras-primas: "Tive Sim", "Acontece", "As Rosas não Falam", "O Mundo é um Moinho". Carlos Cachaça não era mais o parceiro ideal de antes.

Deixei passar alguns sábados e refiz a pergunta a respeito daquilo que passou a ser uma obsessão para mim, o "hiato de Cartola", um segredo que busco desvendar até hoje.

O entrevistado fez uma cara feia. Foi à cozinha, trouxe uma garrafa de cerveja, que bebemos em silêncio. Depois me convidou para sair.

Andando a seu lado pela rua Visconde de Niterói, ao pé da favela, as pessoas cumprimentavam "seu" Carlos (e a mim também, por educação). Foi o mais perto de me sentir uma bamba na vida.


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