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Ilustrissima

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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Lençóis secando na grama

AMILCAR BETTEGA

O sol do meio-dia deixa-os ainda mais brancos, obrigando os olhos a fecharem-se, enquanto que o único desejo é beber o mundo. E o mundo, por enquanto, é um mar de campo, mar verde e seco, onde flutuam lençóis recém-lavados sob um céu infinitamente azul. Tudo paralisado nesse instante, nesse meio-dia de janeiro, quando as cigarras começam a enlouquecer.

O ar é puro, às vezes vem um cheiro de pêssego do pomar nos fundos da casa. E de longe vêm as vozes das mulheres, algumas risadas, e o barulho da roupa. Então a água, o sabão, outros lençóis e as mãos que batem surdamente o tecido molhado: tudo é lavagem ainda. Tudo é suspensão.

Agora os lençóis secam na grama, imensos panos de algodão que em breve serão recolhidos, antes que o calor comece a ressecar-lhes as fibras.

O menino está lá diante do mundo, os olhos castigados pela luminosidade excessiva. As cigarras se esganiçando dão a verdadeira dimensão do silêncio do campo ao meio-dia. Logo alguém vai chamar para o almoço, talvez o som de um rádio e o noticiário serão ouvidos ao longe. Todos os sons são ao longe. Tudo acontece à volta. Mesmo as cigarras, cujo retinir tende ao paroxismo, não estão ali. Por enquanto não há nada além de imensas manchas brancas sobre a grama. Silenciosas. E quarando.

Quarando, quarando, ele se repete a palavra que --já desconfia -- ficará ali, permanecerá como parte daquela paisagem, mesmo que o mundo avance.

Palavras e paisagens que não podem estar em outro lugar nem em outro tempo. Palavras e paisagens, mas não é isso o mundo? Nunca mais ele dirá, ou pensará, "quarando". Nunca mais, depois daqueles verões infinitos, de tardes infinitas suspensas pelo canto agonizante das cigarras. Para recuperar a palavra, para senti-la outra vez se formando na garganta, se mexendo dentro da boca antes de sair à procura de um significado que será sempre impreciso na sua imaginação, para isso vai ser preciso ser menino outra vez.

Voltar aqui, diante dos lençóis que secam sob o sol desse meio-dia sem fim, será a única forma de dizer "quarando" outra vez. E outra vez imaginar significados, inventar um corpo para essa palavra que é apenas som e o movimento de letras que se roçam umas contra as outras dentro da boca, trocar o sentido cada vez que pensar na palavra, cada vez que sentir que ela se forma no interior da garganta. Não será isso o mundo? Inventar sentidos na sombra fluida da palavra, acumular imagens na retina para voltar sempre à mesma paisagem que é a síntese antecipada desse mundo, o resultado da sobreposição de todas as paisagens que se descortinarão diante do menino que agora, isolado de tudo, no silêncio do janeiro mais afastado no tempo, olha abismado e quase cego para os lençóis incomensuravelmente brancos estendidos na grama, secando sob o sol.

O convalescente

Uma luz doce entra pela janela do meu quarto e desliza até a cama como um cobertor a mais que fosse puxado para me esquentar o corpo. Ouço silvos de pássaros em busca de um lugar para passar a noite. Alguns livros repousam à minha cabeceira. Dentro de pouco tempo mergulharei outra vez em suas histórias, estarei de novo misturado às peripécias dos personagens, cuja agitação sinto daqui, uma pulsação de vida que os livros fechados não retêm.

Mas isso é para depois, por enquanto deixo-me submergir na calma dessa luz do fim do dia. Ela é espessa, quase pastosa, e me traz a sensação de flutuar à meia altura como se o meu quarto fosse um fundo de mar e o meu corpo tivesse uma densidade pouca coisa superior à da água mas não o bastante para me levar ao fundo. Sinto-o leve, esvaziado de suas forças, mas também do que as consumia. O cansaço, mais do que um esgotamento físico, é agora apenas um rastro da passagem da doença. Seu efeito é quase narcótico, e eu passo da vigília ao sono e do sono à vigília sucessivas vezes enquanto a mesma luz doce e amarela embala o meu quarto.

Durante esses curtos períodos de sono, sonho com os personagens dos livros que repousam ao meu lado. Por vezes sou um deles e me vejo deitado na cama, imóvel, num embate silencioso contra a doença. Mas também isso não é desagradável: ver e sentir o corpo de fora são ainda formas de recuperar o que parece ter se dissipado. Deixo-o por momentos, e é como se eu o aliviasse não da dor, porque ela não existe mais em um corpo convalescente como o meu, mas da memória residual dessa sensação, desses instantes críticos em que ele, o corpo, foi solicitado ao extremo e multiplicou suas forças inventando limites impensáveis.

Entrego-me ao prazer desse momento, dessa luz que declina, mas tão lentamente que parece querer perpetuar o instante. Finalmente apanho um livro, abro-o ao acaso, leio um parágrafo, apenas um porque a minha capacidade de concentração é precária, e me deparo com a descrição de uma figueira, o tronco imponente da figueira sustentando uma copa abundante, em cuja sombra está deitado um homem.

Ele dorme mansamente, a cabeça apoiada na jaqueta enrolada à guisa de travesseiro. Acabou de comer alguns figos, como comprovam as cascas amontoadas ao seu lado. E dorme. A sombra é imóvel, ainda que o sol se incline no horizonte. Há alguns pássaros que se alvoroçam nos galhos da figueira. Mas nada parece perturbar o repouso do homem.

Ele está estático. A sombra se confunde com a penumbra do entardecer sob a grande copa da figueira e ele permanece imóvel. A noite vai caindo, a temperatura desce alguns graus. Mas nada parece perturbar o sono do homem. Ele continua a dormir mansa e profundamente.

Enquanto uma formiga passeia pelo dorso de sua mão, seguindo o trajeto das veias.


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