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A reinvenção do Fundo

O caminho do FMI de volta ao mapa

LUCIANA COELHO

Dominique Strauss-Kahn entrou confiante no salão do hotel Baur au Lac, em Zurique, na tarde de 11 de maio de 2010. As notícias que o então diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional tinha para os repórteres eram cinzentas. A União Europeia acabara de acertar o primeiro megapacote para frear a crise econômica que ainda a consome: € 750 bilhões, um terço dos quais viria do FMI. A Grécia, apesar dos protestos nas ruas, aceitara um rígido ajuste fiscal.

O chefe do Fundo repetiu que o programa grego era "dolorido", mas necessário; que o problema não acabava no deficit (não acabou); e que o Fundo tinha linhas de crédito para quem precisasse.

O que destoava do receituário era o quase entusiasmo de Strauss-Kahn. A cantilena no salão do Baur au Lac -tão parecida com a que a América Latina se acostumara a ouvir quando se tornou cliente constante do Fundo nos anos 80 e 90- não era só para enumerar recomendações e garantias. Era para mostrar que o FMI estava de volta.

Menos de três anos antes, afinal, a organização estava dispensando funcionários e discutindo internamente que rumo tomar, sem saber como se financiar quando não havia empréstimos volumosos a conceder. A própria relevância do Fundo, uma instituição criada no pós-guerra e com os olhos voltados para a Grande Depressão, havia sido posta à prova -quase esquecida- na década de crescimento global que sucedeu o colapso financeiro na Ásia, em 1997.

A crise econômica mundial a salvou. Em um ano, de 2009 para 2010, as reservas do FMI para empréstimos haviam triplicado para US$ 750 bilhões. O debate para ampliar o mandato da instituição deslanchara na sede em Washington, e sete meses depois, em dezembro, os sócios do Fundo concordariam em dobrar os recursos do sistema de cotas que o financia -dos atuais US$ 383 bilhões para US$ 767 bilhões a partir de outubro de 2012. Mudanças há muito discutidas passaram a ser implementadas. Economistas em meio de carreira, experientes em outras instituições, queriam trabalhar ali.

A entrevista em Zurique, lotada e ouvida com atenção, consumava essa reinvenção.

ADAPTAÇÃO

"A razão para a contínua relevância está na capacidade de adaptação e na universalidade", afirma a atual diretora-gerente da instituição, Christine Lagarde. "O Fundo normalmente se adapta rapidamente às necessidades de seus acionistas e a uma paisagem global sempre mutante -embora, às vezes, não seja rápido o suficiente."

A estrutura mais enxuta -2.470 funcionários e um conselho diretor com 24 representantes dos países mais importantes no sistema financeiro internacional- faz o FMI ser descrito como a mais ágil das burocracias globais. Ainda assim, foram dez os anos em segundo plano até a instituição que o economista da globalização Dani Rodrik descreveu como "tão importante quanto mal-amada" estar pronta para voltar ao púlpito e lidar, como há décadas não fazia, com os ricos.

A atenção não veio sem ônus. 368 dias depois da entrevista no Baur au Lac, em outro hotel de luxo, desta vez em Nova York, Strauss-Kahn seria preso, suspeito de estuprar uma camareira. A acusação depois perderia a base ante a comprovação de mentiras da moça, mas bastou para pôr em xeque a reputação do suspeito e da instituição que ele dirigia.

Para evitar ilações, Strauss-Kahn renunciou. Depois, liberado da prisão domiciliar, voltou à França, e o caso foi fechado. Mas a credibilidade do Fundo -se havia permissividade e sexismo- já tinha sido questionada. A poeira só assentaria com o passar das semanas, em larga medida por causa das manifestações de funcionárias da instituição em sua defesa.

O que o escândalo não abalou foi a cotação do político francês dentro do FMI. É difícil, ainda hoje, um funcionário discorrer sobre as mudanças no organismo sem reservar elogios ao sujeito que as tirou do papel. "Strauss-Kahn teve enorme impacto no fundo porque ele entendeu o papel que o FMI tinha a desempenhar na Europa para solucionar a crise", diz o historiador Jim Boughton, que se dedica à instituição. "De certa forma, ele pôs o Fundo de volta no mapa."

No mês seguinte à renúncia do socialista, Lagarde, 55, seria escolhida a primeira mulher a dirigir o FMI desde sua criação, em 1945. Advogada, ex-ministra das Finanças, ex-atleta de nado sincronizado, a executiva de curtos cabelos brancos e cores vivas nas roupas tem em comum com o antecessor a nacionalidade e a "star quality", aquilo que distingue quem precisa de pouco para cativar uma plateia.

Tem também o discurso direto, embora mais sóbrio e bem talhado pelos anos de vida corporativa.

Encarregada de prosseguir com a metamorfose incubada nos anos de bonança e acentuada em 2007, ela já caiu de pé. "E correndo", brinca Boughton. O desafio imediato é a crise, mas há duas questões estruturais da organização com as quais sua nova líder precisa lidar, ambas tornadas mais evidentes pelas atuais turbulências.

Uma é a interconexão entre os mercados financeiros e as políticas econômicas de seus 187 países-membros, algo que se acelerou acima de qualquer previsão na última década. A outra é a busca pelo equilíbrio ao lidar com esse grupo heterogêneo que é, simultaneamente, controlado (ao ser supervisionado) e controlador (porque são seus acionistas) do Fundo.

O chileno Nicolás Eyzaguirre, que há três anos dirige o crucial Departamento de Hemisfério Ocidental (Américas) do FMI, diz ter sido surpreendido positivamente em seu retorno à casa pela capacidade de adaptação do Fundo (antes, ele integrara o conselho diretor, do qual saiu para assumir o Ministério da Economia no Chile).

"Mudou para melhor", conclui. "Mas dizer que isso aqui hoje é uma instituição totalmente equilibrada, onde os mais fracos recebem o mesmo tratamento que os mais fortes... Ainda não chegamos lá. Não se engane." A observação de Eyzaguirre não é solitária. É um ponto em que o Brasil tem insistido, um problema apontado por todos os funcionários da instituição ouvidos pela Folha -inclusive Lagarde, que fez da conclusão das reformas uma meta para garantir a legitimidade do FMI.

MUDANÇAS

Desde que os acordos de Bretton Woods propuseram a criação do FMI, em 1944, vigora um entendimento tácito pelo qual sua chefia cabe a um europeu (com os americanos fica o Banco Mundial, de fomento ao desenvolvimento). Foram um belga, dois suecos, um holandês, um alemão, um espanhol e cinco franceses. A decisão costuma causar incômodo entre um grupo de sócios que, dos 44 iniciais, mais que quadruplicou. Ainda mais com o redesenho de forças econômicas, a ascensão da Ásia e, em segundo plano, da América Latina, e a hiperpopularidade geopolítica de China, Índia e Brasil.

Quando completada a reforma das cotas aprovada pelo Fundo, em outubro do ano que vem, os três países, além da Rússia, estarão entre os dez maiores acionistas da instituição, e a China ocupará o terceiro posto. O realinhamento ainda ampliará as cotas de 54 integrantes e dará um pouco mais de voz aos de baixa renda, além de mais poder aos emergentes.

"O mundo mudou. Se você tem uma instituição cooperativa, com 187 membros, precisa refletir essa mudança para bem servir a eles", diz o iraniano Reza Moghadam, chefe do Departamento de Europa.

Um espelho da mudança é o Departamento de Estratégia, Política e Revisão, que Moghadam dirigia ao receber a Folha (ele foi promovido horas depois). Se a imagem era de um FMI ditador de regras e apertador de cintos, o Fundo ainda faz isso. Mas com mais suavidade. Abdicou também da receita "tamanho único" que costumava aplicar antes da eclosão da crise asiática.

"O novo arcabouço diferencia o estágio e as necessidades do país", explica. "Criamos uma linha de crédito flexível, que não tem condições expostas, e que disponibiliza uma enorme quantidade de dinheiro. É uma enorme mudança."

De fato, o FMI costumava expor devedores, o que soava como alarme entre investidores e o levava a ser satanizado por governos. Não mais. A nova linha é oferecida sem alarde e serve de "backup" para países cuja economia vai bem, mas pode ser atingida de súbito por crises iniciadas em outro lugar. Para se credenciar, é preciso mostrar solidez político-econômica, mas ela não está condicionada à adoção de um programa de austeridade.

As mudanças também aumentaram tamanho e importância do Departamento de Mercado de Capitais e Monetários (MCM).Encarregado de monitorar os mercados, lidar com bancos centrais e prestar assistência técnica aos países-membros, esse braço do FMI permeia quase todos os demais departamentos. Sem ele, dificilmente o Fundo teria o estofo para assumir o protagonismo que assumiu na crise.

"Este tem sido 'o' lugar para estar", diz o grego Dimitri Demekas, que chefia a área de monitoramento financeiro. Ali são elaborados e aplicados os "testes de estresse", pelos quais o FMI avalia se o sistema bancário e financeiro de um país e pode absorver choques internos e externos. Ali também se produz relatórios mais gerais sobre a saúde desses sistemas. Com a crise, o programa se tornou obrigatório para 25 países considerados vitais para as finanças globais, em termos de contágio, em um planeta cada dia mais interconectado.

NOVOS ATORES

Essa mudança parcial de foco para os mercados -o Fundo sempre lidou, essencialmente, com governos soberanos- foi acentuada com a crise, mas não deriva dela. Reflete, isso sim, outro fenômeno geopolítico paralelo à reorganização de forças entre os países: a emergência dos atores não estatais, conceito cada vez mais explorado por teóricos políticos como Joseph Nye.

Demekas vê vantagem nesse escopo de ação, menos engessado. "Com os governos é tudo mais estruturado, há objetivos, acompanhamento, avaliações. Quando falamos com bancos, não há pressão no fim para chegar a um acordo."

O processo que descreve é muito mais consultivo e colaborativo.Mas, como ninguém esperava que a crise tomasse as proporções que tomou -e o FMI é frequentemente criticado por não ter antevisto o tamanho do estrago-, teme-se agora um desequilíbrio na estrutura interna em favor dos novos atores.

"Nos últimos três ou quatro anos, houve um processo de mudar um pouco o foco do Fundo de uma relação bilateral com os países para outra mais multilateral", explica o economista brasileiro Marcello Estevão, que hoje chefia a missão do FMI na Nicarágua.

"A questão interna é se nós fomos muito nessa direção, e, com isso, a relação bilateral foi prejudicada", questiona, lembrando que o quadro de funcionários encolheu antes da crise "porque se pensava que o Fundo estava grande demais para pouca relevância". Agora, diz ele, é preciso encontrar o equilíbrio entre produtos multilaterais e a contínua relação bilateral.

O perfil de quem trabalha para o FMI também foi revisto na remodelagem de identidade. Um programa de diversidade foi implementado. e um relatório interno de avaliação, feito em 2010 sob a tutela do brasileiro Murilo Portugal, indicou sucesso no esforço.

E não se trata só de diversidade de gêneros (mulheres em cargos mais altos, aliás, mal superam os 20% do total). "O pensamento neste prédio sempre foi dominado por gente educada em universidades americanas, britânicas ou australianas", aponta o historiador Jim Boughton. Isso não mudou de todo, mas há um esforço maior para buscar economistas de origens e formações diferentes, inclusive de países menos centrais.

Hoje, são 141 nacionalidades espalhadas pelos dois prédios que sobem lado a lado na rua 19, em Washington -amarronzado e quadradão o primeiro, claro e todo vazado pela luz natural o segundo, eles poderiam resumir as duas encarnações do Fundo. "A diversidade enriquece a discussão", diz Estevão, que tem 11 anos de casa e trabalhou no Federal Reserve, o Banco Central americano, ao concluir seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Finalmente, investiu-se em transparência e relação com o público. Não é acaso que os últimos dois chefes do FMI sejam carismáticos, e não tecnocratas. "A transparência, o comprometimento e a prestação de contas são as razões mais importantes, acho eu, para o Fundo ter uma imagem positiva", diz Lagarde, ela mesma admitindo que tinha uma ideia bem mais dura da instituição no passado.

LETARGIA

As mudanças, ainda que inconclusas, puseram o FMI à frente da letargia costumeira da governança global. E ajudaram na credibilidade da organização, agora às voltas com a crise nas economias avançadas. "Porque o FMI iniciou a mudança, quando a crise estourou, houve mais aceitação de seu papel", diz Reza Moghadam.

Para frente, quando sair do "modo de crise", o Fundo se propõe a afinar sua relação com os mercados, melhorar a relação de forças interna e reforçar sua capacidade de prevenção, e não só de reação ("mas os países só vêm até nós quando a coisa estoura", reclama o iraniano). Quer também reunir capital intelectual para nortear o debate econômico -sobretudo em contaminação de crises, um campo novo e no qual o Fundo tem posição privilegiada, dado o alcance de sua atuação.

De certa forma, não deixa de ser um retorno -com percalços- à sua ambiciosa missão original: "Fomentar a cooperação monetária internacional, assegurar a estabilidade financeira, facilitar o comércio, promover o emprego, o desenvolvimento econômico sustentável e reduzir a pobreza".

Com a capacidade de ação restrita pelas limitações políticas em seus países-membros, pode mesmo ser esse seu melhor papel nos próximos dez anos.

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