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Arquivo aberto - Memórias que viram histórias

Rio de Janeiro, 1959

A torradeira do poeta

DOMINGOS OLIVEIRA

Joaquim Pedro de Andrade era um príncipe. E foi através dele que entrei no cinema, no cargo de segundo assistente do curta-metragem "O Poeta do Castelo", em que ele retratava o padrinho, Manuel Bandeira.

De família tradicional, cultíssimo, Joaquim falava baixo e de boca fechada, como se não quisesse ser ouvido. Joaquim era o único que Glauber Rocha levava em consideração. Se Glauber era o rei do cinema novo, então o Joaquim era o primeiro-ministro. E somente tinha amigos do mesmo alto gabarito, como o longilíneo e levemente gago Mário Carneiro, grande fotógrafo do cinema novo.

Eu, menino ignorante de Botafogo, estremecia diante daqueles deuses. Naquele tempo, para juntar pedaços de filme, era necessário gilete para raspar um celuloide e cola para colar. Ou no mínimo durex. Provando assim o milagre de Eisenstein: duas imagens juntas criam um terceiro significado.

No quarto dia de filmagem, constava o plano "cena da torradeira". Manuel entrava na cozinha, em seu pijama matinal, botava manteiga numa fatia de pão, enfiava na torradeira e ia para dentro de casa. A câmera ficava na torradeira. Bem, nenhum estudante de cinema de hoje pode imaginar como pode ser complicado iluminar uma torradeira. E a câmera refletida no metal? E o "eixo", estava certo?

Nunca esquecerei a gravidade da equipe inteira no pequeno apartamento do Bandeira, olhando atentamente para uma torradeira e esperando o momento decisivo em que o pão ia saltar.

O filme virgem naquele tempo custava caríssimo. Muitas vezes não continha TriX (filme sensível), era preciso arranjar vários rolos de máquina fotográfica, esvaziá-los no escuro e juntá-los imediatamente para compor um rolo de 3 minutos digno da câmera cinematográfica.

Esta sacralidade do cinema foi totalmente esquecida e não pode ser entendida pelos cineastas de hoje. Muita coisa foi banalizada nos tempos modernos. O crime é uma delas; o cinema é outra.

"Django" (2012), "Melancolia" (2011) ou "A Pele que Habito" (2011) podem ser bons filmes, mas não são o "Cidadão Kane" (1941) nem "O Garoto" (1921). Será um dia de glória quando o cinema resgatar aquele momento da torradeira.

Eu morria de timidez ali dentro da casa do poeta, num beco do Castelo, no centro da cidade. Eu ficava de mão fria toda vez que ia me aproximar do poeta. Já era muito ficar na mesma sala durante horas.

Um dia a equipe atrasou por causa do trânsito. O encontro era na esquina do Palácio Capanema e chegamos só nós dois: o poeta e eu. Calados, sem nenhum assunto possível, ficamos ali uns intermináveis 15 minutos. Foi nesse momento que Manuel abriu a boca e externou uma reflexão de poeta. Espantei-me: ele sabia meu nome!

"Domingos, esse lugar aqui não é mais o meu. Não existia nenhum desses edifícios e a cidade era outra. Está vendo essa multidão que anda de um lado para o outro? Eu não conheço nenhum deles. Esse mundo não é mais o meu." Não sei se ruborizei em febre ou se fiquei calado. O poeta tinha falado. Comigo.

Alguns dias depois, usando um equipamento moderníssimo (um trilho sobre o qual deslizava a câmera sobre rodinhas), Manuel passava em frente à Academia Brasileira de Letras ao som de sua voz dizendo que ia para a Pasárgada.

Aproveitemos o momento para enfatizar que o pequeno documentário, "O Poeta do Castelo", é dos melhores trabalhos do Joaquim Pedro. Tem uma magia que não se sabe de onde vem. Talvez da torradeira ao som da "Pavane", de Gabriel Faurè.


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