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Imaginação

Quem era o Neto sem o Filho?

SÉRGIO RODRIGUES

O que restava daquela longa história de ódio já não era ódio, foi sua primeira conclusão, para a qual deviam contribuir as cervejas do jantar e a atmosfera irreal que tinha baixado sobre o Rocio na forma de uma neblina que o Maverick cortava com facilidade enganosa, saindo mais molhado de cada nuvem do que se atravessasse uma cachoeira. Então era o quê?

Neto sabia desde criança que Murilo era mais frio e autocentrado do que o Dr. Spock. Sabia também que à sombra frondosa de babacões brilhantes como ele nenhuma planta podia crescer direito. Quando encontrou a imagem botânica num artigo sobre criação de filhos lido na sala de espera do dentista, talvez fosse uma "Seleções", devia ter nove ou dez anos --cedo para saber que se tratava de um clichê barato. Aquilo foi uma revelação. Passou o resto da vida sentindo pena de si mesmo, planta subdesenvolvida, pondo a culpa na sombra do pai. Agora que se aproximava dos 50 anos e Murilo ia morrer, o que sentia era mais parecido com vergonha.

O pai devia ser ainda um babacão, essas coisas não mudam fácil, mas era um babacão velho. Desde que se internara no mato não escrevia em lugar nenhum e, se escrevesse, teria pouco a dizer sobre um futebol-indústria sem nada em comum com o de sua juventude. Seus amigos e colegas tinham morrido ou se afastado, seus livros estavam todos fora de catálogo. Ninguém mais lia Murilo Filho. Aliás, quem era mesmo Murilo Filho? Só quem tinha mais de 35 anos --o que, na paisagem cultural do novo século, era quase um crime inafiançável-- já ouvira falar de seu nome.

Nesse caso, o mais provável é que se recordasse primeiro da fama de reacionário, preço alto cobrado pela chancela do MEC a seus livrinhos ufanistas dos anos 1970. O homem havia deixado de ser um jequitibá frondoso para virar uma árvore seca, desfolhada e solitária. Uma árvore patética. Exatamente como você, Neto falou em voz alta, lançando um olhar para o retrovisor e rindo para disfarçar a gravidade do que dizia. Pensou no velho desenho animado em que o Esquilo Louco se encrespava diante da própria imagem toda vez que encontrava um espelho: Quem é você? O que faz aqui?

Ele sabia que se chamava Neto --não estava tão perdido assim. Sabia também que Neto não era bem um nome: era um marcador geracional, quase um número. Quem era o Neto sem o Filho? Quanto ao que fazia ali, acreditava começar a entender. Estava ali para dar a Murilo a chance de lhe pedir perdão por ter sido o pior pai do mundo e assim morrer em paz. Relutaria a princípio, mas acabaria perdoando. Então se jogariam nos braços um do outro como numa cena piegas de "Os Waltons". Boa-noite, Murilo. Boa-noite, Neto.

Lá fora, os faróis do carro tentavam inutilmente furar a neblina densa.

Aquela noite contou à namorada da vez, moreninha de pele caramelo e cabelos louros, que tinha ido visitar seu pai, com quem não conversava direito havia 26 anos. Garota inteligente, ela perguntou:

"O que aconteceu há 26 anos?"

Tinham acabado de transar, estavam abraçados na cama da segunda suíte mais cara do motel Shalimar, de frente para o mar de São Conrado --piscina aquecida com cascata, quase duzentos reais o período de seis horas--, e Neto percebeu que falara demais. A intimidade física podia provocar aquilo: por um condicionamento bioquímico tão ancestral quanto besta, lá vinha um clima de cumplicidade que convidava a dividir segredos. A tentação de abrir a guarda já tinha se apresentado outras vezes, mas após uma longa série de Taynnaras, Joyciannes, Miquéllys, Jhennyffers e Karolaynnes ele se julgava escolado na arte de driblar o perigo e se concentrar mentalmente no autodiálogo aprendido com o Esquilo Louco. Hoje você foi encontrar seu pai, Neto, com quem não conversava há 26 anos.

Contrariar a regra com Gleyce o perturbou. O que está havendo com você, rapaz? Ela tentou outra abordagem:

"Vocês devem, tipo, ter assunto à beça."

"Nem tanto", ele riu. "O cara falou o tempo todo, eu não falei nada."

Erguendo a cabeça que repousava em seu peito, a moça arregalou os olhos, teatral. Depois afastou as pernas que enlaçavam as suas, deixou os cabelos dourados com raízes pretas desabarem sobre o travesseiro e puxou o lençol até os peitinhos do tamanho de xícaras de café. Sua voz era solene quando disse:

"Por que vocês brigaram?"

O nome dela era Gleyce Kelly, obra cruel de outro pai, quem sabe sem coração como o seu, mas provavelmente sem noção de coisa alguma, a ponto de supor que a princesa de Mônaco fosse chamada de Grace por ignorância do povo burro --aquela gente que falava "pobrema", "TV Grobo" e "apricação de emprasto".

"Deixa quieto, princesa. Longa história."

E tratou de emendar um mutismo também longo, como se uma coisa tivesse que corresponder à outra para restaurar o equilíbrio que sentia estar em risco em sua vida. Se não tinha falado nem dos Kopos, seu momento de microglória no rock'n'roll --o que certamente lhe valeria pontos com a namorada--, de Murilo é que não ia falar.

Gleyce suportou o silêncio com a paciência que exercitava em seu trabalho como caixa da farmácia Belacap da Marquês de São Vicente. Na fase da conquista, Neto havia observado a menina em ação. Atrapalhados com a senha de seus cartões de crédito ou débito, os olhinhos lacrimejantes daqueles que seu supervisor devia chamar de "clientes preferenciais da melhor idade" estudavam o teclado numérico da maquineta como se fossem chamados a calcular uma equação da Nasa, enquanto atrás deles a fila crescia, bufava, alternava o peso de um pé para o outro. A lourinha de farmácia, uma santa, sorrindo.

"Tomara que vocês voltem a ficar na boa", ela disse por fim. Virou-se de bruços para encará-lo, apoiada nos cotovelos e, no espelho do teto, o lençol repuxado descobriu uma bunda compacta e um palmo de coxa -- 23 anos com corpinho de 18.

"Negócio de pai é bizarro. O meu sumiu quando eu tinha seis anos. Trabalhava de rôdi no Furacão 2000, um dia foi fazer um show em Fortaleza e ficou por lá. No começo ligava, mandava uma graninha. Depois sumiu. Minha mãe achou que ele tinha morrido e eu também acabei achando. Sabe quando a pessoa, tipo assim, evapora? Bizarro. Minha mãe falou que ele devia ter se metido num rolo com o movimento de Fortaleza, como se meteu um tempo aqui na Rocinha, antes deles casarem. Queimaram ele, pensou. Aí um dia ele aparece do nada no meu aniversário de 15 anos. Todo de barba, barrigudo. Queimado, mas só de praia. Tipo assim, bizarro."

E Gleyce Kelly foi no embalo. Neto desabilitou o áudio dela e ficou olhando para o seu rosto bochechudo de Goldie Hawn esquecida no forno --olhos bem separados como os da atriz de "Sugarland Express" e quase tão pretos quanto o rímel excessivo que lhe pesava os cílios, boquinha meio dentuça se mexendo sem som-- e para a tatuagem em seu ombro esquerdo: um Bob Esponja da cor de seus cabelos, sorriso débil mental arreganhado. E até esse detalhe lamentável na superfície de Gleyce, acidente que ele costumava fingir não estar lá, pareceu naquele momento digno de ternura.

Enquanto ela mexia a boca, Neto balançava a cabeça de vez em quando como se ouvisse mesmo a sua história, que, no fim das contas, não teria como passar de uma variação pouco criativa da triste história de abandono paterno e abnegação materna que um condicionamento bioquímico tão ancestral quanto besta levava a ser contada o tempo todo nas camas intercambiáveis do Shalimar, do Vip's e do Sinless.


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