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O documentarista do sonho

Filme que cunhou estilo de Fellini faz 50 anos

EUCLIDES SANTOS MENDES

RESUMO O sucesso de "A Doce Vida" (1960) fez do italiano Federico Fellini um signo do cinema. Mas foi três anos depois, com "Oito e Meio", que o adjetivo "felliniano" nasceu para o mundo. O diretor deu adeus à escola neorrealista e levou o universo onírico, já presente em seus desenhos, para o centro de sua obra.

Acredita-se que alguns dos personagens mais característicos da obra de Federico Fellini (1920-93) tenham tido seu primeiro sopro de vida nas recordações que o cineasta reunia no seu "Libro dei Sogni".

Esse "livro dos sonhos" se relaciona ao modo de criação artística por meio do inconsciente e da subjetividade. Ao que se supõe, há nos desenhos registrados ali impulsos profundos de criação de personagens e episódios, alguns recriados na tela cinematográfica.

Em "Oito e Meio", filme que completa agora 50 anos, o cineasta traz o mundo onírico que anotava em seus álbuns ao primeiro plano, ao tentar explicar as motivações do protagonista, o cineasta Guido, naquilo, em suma, que o crítico italiano Ennio Bispuri qualificou, no livro "Interpretare Fellini", como "o sonho de onipotência de um impotente".

Não se sabe ao certo se os registros imagéticos do "Livro dos Sonhos" --obra ainda a ser devidamente estudada-- têm relação direta com a criação de "Oito e Meio". Vale observar, no entanto, que há uma camada onírica essencial no enredo do filme.

Guido Anselmi (interpretado por Marcello Mastroianni, ator-fetiche de Fellini) é um cineasta que, prestes a começar seu próximo trabalho, não tem ideia de que filme fazer. A crise criativa mergulha o personagem em sonhos assombrados pela família, recordações da infância e mulheres que marcaram sua vida.

A arquitetura visual arrebatadora circula pelo inconsciente de Guido, mas também avança pela memória decodificada do personagem e pelo tempo presente.

RIMINI A relação de Fellini com o desenho se estabeleceu ainda na infância e na adolescência em Rimini, cidade na costa do mar Adriático onde nasceu. Apreciava caricaturas, charges e histórias em quadrinhos --tornou-se "fumettista" (cartunista) precocemente.

Foi no começo dos anos 1960 que o talento para desenhar transformou-se numa terapia. Aconselhado por um psicanalista junguiano, o berlinense Ernst Bernhard, com quem passou a se consultar, Fellini decidiu registrar graficamente os próprios sonhos.

Quase todas as manhãs, assim que despertava, punha-se a desenhar efusivamente as lembranças da noite. O hábito durou até 1990; quando se deu por satisfeito, possuía três grandes álbuns preenchidos por imagens coloridas e voluptuosas, com histórias carregadas de simbolismo.

Após a morte do diretor, em 1993, dois dos álbuns --o terceiro desapareceu-- foram trancados no cofre de um banco italiano, a salvo da disputa entre os herdeiros de Fellini e os de sua mulher, a atriz Giulietta Masina (1921-94).

Em 2006, após um acordo que envolveu a Fundação Federico Fellini (sediada em Rimini), o governo da Emilia Romagna (região italiana onde Fellini nasceu) e os herdeiros de Masina, os enigmáticos livros foram, enfim, abertos e apresentados publicamente como um precioso instrumento para ajudar a compreender a estilística e a poética do diretor de "Oito e Meio".

Seu conjunto foi publicado de fato como livro em 2007, na França e na Itália.

MERGULHO Em "8 1/2 de Fellini - O Menino Perdido e a Indústria", publicado no livro "A Sereia e o Desconfiado - Ensaios Críticos", o crítico Roberto Schwarz vê na estrutura atemporal do filme o sinal e, por conseguinte, o caminho para o mergulho simbólico na "alma" do protagonista.

O crítico adverte, todavia, ser um artifício enganoso o espelhamento que costumeiramente se faz entre Fellini e Guido --identificação "autorizada pelos colunistas de mexerico, pelo próprio diretor, talvez, mas não pelo filme".

"Se Fellini é Guido", escreve Schwarz, "os conflitos deste campeiam idênticos no peito daquele, que seria o bobo de suas próprias limitações, um pequeno-burguês nostálgico e fantasioso, incapaz de fazer qualquer coisa que preste".

A potência subjetiva de "Oito e Meio" é reveladora de um gesto maior, que vai além da psicologia do diretor e que avança pelo campo do imaginário na criação artística, como um tratado poético em forma de imagens, cujo pensamento, vivo e pulsante, alcança densidade poética inigualável.

É como se o filme e o gesto de pensá-lo criassem, em película, a experiência de uma aventura em que o mundo da memória e dos sonhos se manifesta por meio de imagens "significantes".

No ensaio "O Salto Mortal de Fellini", publicado no livro "Exercícios de Leitura", a crítica Gilda de Mello e Souza avalia que o filme se inscreve na linha de vanguarda da narrativa contemporânea.

Segundo a ensaísta, apesar de dúvidas e indecisões, avanços e recuos, "foi para a aventura de saltar da torre no espaço vertiginoso da arte que Guido se preparou longamente. O filme de Fellini é a fenomenologia deste gesto frágil e arriscado".

De onde vêm, contudo, essa fragilidade e esse risco? Talvez da própria tentativa de construção imagético-discursiva do "cinema de poesia" em Fellini.

"Cinema de poesia", tal como pensado e analisado pelo cineasta e crítico italiano Pier Paolo Pasolini no ensaio de mesmo nome, é um termo que se relaciona ao uso da "subjetiva indireta livre", meio narrativo, derivado do discurso indireto livre da literatura, em que o autor manifesta suas ideias, seus sentimentos e suas perspectivas de mundo por meio da psicologia dos personagens e da poética inerente ao discurso cinematográfico.

A existência contraditória de Guido evidencia a experiência do impasse no filme como gesto criativo complexo. O personagem é o "álibi narrativo" para Fellini tecer seu argumento poético, na medida em que ele expressa em Guido condições análogas --e, por isso, enganosas numa relação direta de identificação-- na cultura e na psicologia, como requintados atributos de onde ecoa sua própria voz.

Guido, num ambiente marcado pela decadência e pelo posterior reencontro moral, talvez seja o ápice da experiência de confronto do cineasta com a criação cinematográfica tal como pensada pelo "cinema de poesia". É por meio da expressão ambígua e desnorteante do personagem que se evidencia o sentido da formação individual do diretor, pois "Oito e Meio" se resume nisto: é como Fellini torna-se cineasta.

Em 1960, "A Doce Vida" havia feito de Fellini um ícone do cinema; mas foi "Oito e Meio" o filme que fez nascer para o mundo o adjetivo "felliniano".

Federico Fellini, esse "documentarista do sonho", como diz Glauber Rocha no ensaio "Glauber Fellini", dá adeus à escola em que se formou --desde que, em 1945, colaborou como corroteirista em "Roma, Cidade Aberta", de Roberto Rosselini, filme-manifesto do neorrealismo.

Com "Oito e Meio", Fellini mergulha na poesia de seu próprio cinema, retornando ao magma neorrealista originário, mas moldando-o como artifício da sua própria expressão, colocando o artista em confronto com sua subjetividade mais real e, por isso, também, configurando-se como um exame de maturidade.


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