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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Concorrência desleal

Veneza, 1969

CARLOS DIEGUES

A grande atração do festival de Veneza de 1969 era a esperadíssima estreia mundial de "Satyricon", de Federico Fellini.

Fellini estava sem lançar um longa havia quatro anos. Com a saúde abalada, se retirara para sua casa na praia de Ostia, perto de Roma, e desaparecera do noticiário.

Parece que só saía de Ostia para jantar com Marcello Mastroianni, seu ator preferido e amigo fiel. Mas diziam também que, na maior parte das vezes, eles marcavam seus encontros e nenhum dos dois aparecia no restaurante.

"Satyricon", superprodução com estrelas de várias nacionalidades, ia passar no fim do festival, no mesmo dia previsto para meu filme "Os Herdeiros", que também estava na seleção oficial.

Eu ainda não tinha 30 anos e dividia a última jornada do festival com o mestre italiano, com seu filme mais esperado dos últimos tempos. No Lido de Veneza, só se falava de "Satyricon", não se lia nenhum jornal que não o tivesse como assunto principal. Ou único.

No dia 4 de setembro, data marcada para sua exibição, "Os Herdeiros" deveria passar três vezes --de manhã, no fim da tarde e às 21h. A última sessão se daria na Arena do Lido, um espaço popular; as anteriores, no Palácio do Festival, palco oficial do evento. Todas as três antecederiam projeções de "Satyricon".

Naquele dia, acordei bem cedo e fui para a porta do palácio. Uma fila gigantesca parecia estar ali há horas, esperando o sol nascer para entrar na sala de exibição.

Estando "Os Herdeiros" programado para a primeira sessão, desconfiei de que havia algo errado. Chegando mais perto, vi que havia outra fila, de tamanho muito menor, que começava a se mover antes da mais comprida.

A fila maior esperava pela sessão de "Satyricon", que se daria dali a umas duas horas, depois que o pessoal da fila menor visse "Os Herdeiros" e que déssemos nossa entrevista coletiva, ao final da projeção, no palco do próprio palácio.

A projeção de "Os Herdeiros" mal terminara e a multidão já começava a forçar a entrada na sala. Uma autoridade do festival tentou gentilmente me explicar o que estava acontecendo.

Como tudo se passasse cada vez mais rápido, entrou logo no assunto que o afligia e me pediu o favor de aceitar duas alterações na programação: dar a entrevista nos camarins do palácio em vez de no palco, evitando assim as hordas que entravam na sala para ver "Satyricon"; e abrir mão da sessão da tarde de "Os Herdeiros", para que pudessem programar mais uma projeção do filme de Felllini, a fim de atender a demanda.

Ainda estávamos nos camarins do palácio quando o presidente do festival, Ernesto Laura, apareceu vindo dos fundos do prédio, trazendo Federico Fellini pelo braço para que fosse ao palco apresentar seu filme.

Ao me ver, Laura teve a delicadeza de interromper sua marcha em direção à glória de programador e me apresentou o mestre. Fellini, que devia estar a par do que acontecia, estendeu-me a mão, fez um gesto na direção do teatro agitado e, muito simpaticamente, disse-me apenas: "Mi dispiace". Em bom português, queria me dizer "desculpe qualquer coisa".

Só voltei a encontrá-lo muitos anos depois, em 1986, quando "Quilombo" estreou em Nova York. Durante os dias em que ficamos na cidade, fomos a uma sessão especial do filme dele, "Ginger e Fred", e depois a uma festa em sua homenagem.

Ao nos encontrarmos, lembrei-o daquele festival de 1969, e Fellini riu muito. Dessa vez estava mais feliz --porque, em Veneza, "Satyricon" acabara se tornando uma grande decepção. Bem feito.


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