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Rigor e compaixão pautam livro ousado

LUIZ FERNANDO VIANNA

Concisão não é o Forte de Andrew Solomon. Depois das 500 páginas de "O Demônio do Meio-dia", sobre depressão, agora são as mil de "Longe da Árvore". A prolixidade soa paradoxal se pensarmos que há, em seus livros, o desejo de difundir em grande escala informações acerca dos assuntos escolhidos.

A impressão de paradoxo se dilui quase completamente quando se começa a ler "Longe da Árvore". O trabalho do jornalista norte-americano é um dos mais minuciosos que possam existir sobre temas como autismo, síndrome de Down e esquizofrenia. Concilia levantamento exaustivo de dados com entrevistas feitas com 300 famílias ao longo de dez anos.

É, também, um dos mais ousados conceitualmente. Solomon adota a classificação "identidades horizontais" para abarcar num só espectro situações tão diferentes quanto a de um anão e a de alguém nascido de um estupro; um surdo e um transgênero. Enquanto, para ele, identidades verticais vêm de atributos e valores transmitidos por DNA e por normas culturais compartilhadas entre pais e filhos, as horizontais refletem "genes recessivos, mutações aleatórias, influências pré-natais, ou valores e preferências que uma criança não compartilha com seus progenitores".

Como relata, sua abordagem sofreu críticas de parte dos entrevistados: prodígios não queriam estar misturados com os gravemente deficientes, e autistas preferiam estar dissociados das pessoas com síndrome de Down. Mas o acerto de Solomon está exatamente em apontar aproximações entre as várias identidades que estuda.

A aproximação mais óbvia é a da dificuldade de aceitação na sociedade. Mas ele foge do clichê da vida à margem. Mostra que a tolerância e os esforços inclusivos são muito maiores hoje do que há pouco tempo. Por outro lado, prova que o desejo de extermínio de deficiente está longe de se restringir à política oficial nazista, que matou cerca de 270 mil. "Em 2006, o Royal College de Obstetras e Ginecologistas de Londres propôs que os médicos considerassem a hipótese de matar bebês com deficiências extremas", registra.

Como ótimo jornalista, vai desmontando falsas certezas, mudando de caminho ao longo das narrativas para dar vez ao contraditório e, assim, ampliar o conhecimento sobre os temas. Em geral, evita proferir opiniões peremptórias sobre o que escreve, mas às vezes escorrega na tentação, como quando associa o método Son-Rise, de atendimento a autistas, à charlatanice, conclusão que é injusta.

Ele se cerca obsessivamente de pesquisas --vide as 200 páginas de notas. Elas dão suporte aos capítulos, servindo, inclusive, para mostrar aos não familiarizados com os assuntos as características e incidências deles. Usando mais uma vez o exemplo do autismo, é importante saber que 1% da população mundial está no espectro e que o número de diagnósticos não para de aumentar, pois isso dá uma dimensão concreta da situação.

PROTAGONISTAS Os protagonistas do livro não são os números, mas as pessoas. Aí sim sem julgar, aliando rigor profissional a compaixão, Solomon mostra o desespero de pais cujos filhos têm deficiências graves ou vivem em configurações sociais complexas. Ao mesmo tempo em que demonstra entender o que leva um pai a desejar a morte de um filho que come fezes e se automutila, mostra a frequência com que a Justiça é benevolente com os filicidas, como se dissesse que é legítimo eliminar aqueles que não são "normais".

O livro também reúne exemplos de pessoas que deram a volta por cima e se tornaram referência para os que vivem situações semelhantes --e para qualquer ser humano, na verdade. Mas foge de outro clichê, o da "superação", que abastece as gôndolas de autoajuda. Muitas vezes, revela Solomon, as famílias mudam o mundo porque não há, da sociedade cruel aos médicos despreparados, quem as ajude.

O fato de ser disléxico, depressivo e militante gay permite a Solomon tratar "de dentro" as identidades horizontais, espanando preconceitos a partir de sua própria condição --certamente, há ativistas gays que não gostam de se ver num livro que também trata de deficientes mentais. Isso não bastaria se ele não fosse um grande repórter, mas contribui para que entenda, como escreve, que "sofrimento não implica necessariamente amor, mas amor implica sofrimento".


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