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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Minha defesa

THIAGO PICCHI

Por causa da minha sudorese excessiva --sinto muito calor na região da cintura--, costumo dormir apenas com a camiseta do pijama e um par de meias, sem short ou cueca. Ora, isso é normal, a temperatura do nosso corpo não é homogênea. Há pessoas que sentem frio nos pés e calor nas orelhas, ou frio nas mãos e calor no pescoço. No meu caso talvez sejam os pelos, mesmo; mas o que se há de fazer? Tomo o cuidado de apagar as luzes e me encasular debaixo das cobertas antes de despir-me. Tenho meus pudores e consciência do ridículo.

Sei que há maneiras mais elegantes e sedutoras de se desnudar na presença de uma mulher. Sei que Marta, como todas as mulheres, preferiria que eu entrasse no quarto à meia-luz com uma postura olímpica, o peito magnânimo; que desfizesse com destreza o nó da gravata, sem precisar olhar para a gravata, porque olhar para a gravata me deixa um pouco vesgo e zonzo (o ideal seria se eu mantivesse os olhos fixos em algum ponto distante, como se procurasse no infinito a solução para algum problema surgido no trabalho, de preferência um problema nobre e complexo que envolvesse a vida de terceiros; pessoas desamparadas e injustiçadas, humildes, pelas quais eu estaria disposto a contrair inimigos, insubordinando-me a meus chefes para protegê-las). Uma vez desfeito o nó, eu desabotoaria lentamente a camisa branca bem passada, começando pelo botão que esmaga o gogó; e perguntaria displicente: "Como foi seu dia, meu amor?", ou algo assim, pois minha voz desabotoada sempre fica um pouco mais grave e relaxada, e certamente ela perceberia a transformação, a mudança de pele, as cascas do funcionário público cor de fungo caindo no chão para darem lugar à seminudez de um homem robusto; que por pior que seja, ainda assim é um homem, cujos sovacos lanosos são dois ninhos que exalam aquele cheiro inconfundível e aconchegante de homem: cheiro de mato selvagem, esfiha, goiaba, cebola e ureia. Cheiro que acalma as mulheres. Sim, sei que ela aprovaria, e eu não pararia por aí: quando fosse desafivelar o cinto, por exemplo, seguraria a fivela com a mesma firmeza e virilidade com a qual seguraria a cabeça de uma serpente, e deslizaria a serpente até que ela se soltasse por completo de minha cintura, atirando-a em seguida para longe, contra a parede "" como se dissesse: "Olha o que sou capaz de fazer com qualquer um que ameace a nossa felicidade". E depois apagaria a luz, poupando Marta dos detalhes que não interessam. E na surdez das cobertas abafadas meus pés gelados procurariam os dela, indicando, por toques telegráficos, minhas intenções licenciosas. E ela se entregaria. E eu também me entregaria.

Mas pararia tudo, imediatamente, caso sua respiração ficasse ofegante e ela emitisse uns arrulhos sôfregos. Como marido responsável, cônscio do meu papel, jamais permitiria, para o bem e a segurança da relação, que o prazer de minha parceira evoluísse para o delírio e descambasse na demência (o que elas chamam de gozo). Não. Nesse momento seria preciso refrear os impulsos, interromper as oscilações agônicas do espírito e do corpo dela. Um tapa, não muito forte, mas seguro, no lombo, seria bem-vindo. E eu diria: "Controle-se". Sei que elas se sentem mais protegidas assim e que passam a nos admirar por sermos experientes e por sabermos como poupá-las da vertigem momentânea ocasionada pela perda do controle dos sentidos nesses momentos perigosos em que algumas chegam a vislumbrar o abismo da histeria. Sei disso, sei de tudo isso, não nasci ontem. Mas são onze anos de casamento. Isso mesmo, onze anos. Talvez no início, em outra vida, eu me desse ao trabalho.

Eu não sei de nada.

Pelo menos tenho a decência de apagar as luzes antes de despir-me. Talvez pudesse agir melhor, de vez em quando até tenho vontade de dizer: "Boa noite, meu amor, durma bem, a vida é só contradição e eu não saberia o que fazer sem você"; em vez do "me deixa em paz" costumeiro. Sei que esse traje de dormir, apenas uma camisa de pijama bege, com manchas antigas de café com leite, e meias, não é muito sedutor; mas são onze anos de relação! Além disso, é a própria Marta quem se queixa dos meus pés gelados à noite, por isso as meias.


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