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Viagem à roda de uma casa

As epifanias de um arquiteto fora da caixa

GABRIEL KOGAN

RESUMO A trajetória do arquiteto paulistano Eduardo Longo, autor de projetos icônicos como a chamada Casa Bola, em São Paulo, é revista pela primeira vez em livro, do crítico Fernando Serapião. A recém-lançada publicação ressalta o lado experimental de Longo, que fez de seu próprio lar um laboratório permanente.

"Foi uma das experiências arquitetônicas mais fortes da minha vida", disse Rem Koolhaas ao encerrar sua visita à Casa Bola, em São Paulo, em uma tarde de agosto de 2011. O arquiteto holandês --ganhador do Prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura-- fora convidado na noite anterior a conhecer a residência pelo próprio morador e autor do projeto, o paulistano Eduardo Longo.

"Não conhecia esse arquiteto, mas gostei do seu jeito humilde. Ele falava pouco, mas mencionou sua casa, em forma de bola. Fiquei curioso para visitá-la", contou Koolhaas antes do tour, já farejando algo excepcional. Tanto quanto ele, muitos nunca ouviram falar em Longo, de 71 anos: os próprios arquitetos brasileiros frequentemente o desconhecem.

Até o mês passado, apesar da carreira de Longo cobrir mais de 50 anos, não havia nem um livro sequer sobre sua obra, e mesmo textos acadêmicos eram escassos. Em 1971, a revista "Acrópole" lhe dedicou um número inteiro, privilégio dado apenas a nomes como Paulo Mendes da Rocha e Joaquim Guedes. Parou aí. Isso o colocava em um estranho lugar à margem da história e da literatura crítica.

Escrito pelo crítico Fernando Serapião, "Sobre Bolas e Outros Projetos: Eduardo Longo Arquiteto" [orgs. Marcelo Aflalo e Marta Rodés Aflalo, ed. Paralaxe, R$ 90, 192 págs.] permite que entendamos melhor a potência de sua arquitetura. O volume, bilíngue (inglês e português), recolhe desenhos, fotos do arquivo pessoal do arquiteto e divertidas histórias dos projetos, desde os tempos em que Longo era ainda estudante e -- no primeiro ano da faculdade em 1961, com apenas 19 anos -- abriu um escritório na rua Augusta, com outros oito colegas da Mackenzie.

O atrevimento deu rápidos frutos, e os primeiros anos foram de grande esplendor. Ainda na faculdade, Longo executou inventivos projetos, como a Casa do Mar Casado, no Guarujá (1964) --que mereceu menção na renomada publicação italiana "Domus", em 1967.

Diante do terreno apresentado pelos clientes, conta Serapião no livro, Longo pensou em criar "uma construção que pudesse ficar quase incógnita diante da força da natureza". Daí a cobertura de concreto, que parecia uma rocha artificial, mimetizando o entorno.

FORA DO TOM A autonomia e a liberdade de pensamento de Longo, traços marcantes em todos os seus projetos, destoavam do hermético contexto do modernismo de São Paulo dos anos 1960. A Escola Paulista, cujo nome máximo era Vilanova Artigas (1915-85) --autor, por exemplo, do projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP--, se pautava por preceitos claros.

Predominavam construções em concreto armado, sempre muito racionais e que se valiam da chamada "verdade estrutural", ou seja: as estruturas não deviam ser camufladas, mas entendidas como elementos aparentes do projeto --vide as colunas da própria FAU-USP. Além disso, o fazer arquitetônico não se dissociava de acaloradas discussões políticas.

Longo, por sua parte, fazia uma arquitetura experimental, com abundante uso de materiais, composições formais irregulares e, até então, sem pretensões políticas. As obras alcançavam, de qualquer forma, reconhecimento até de seu mestre Franz Heep (1902-78), autor do Edifício Itália.

Aos 29 anos, o arquiteto tinha uma carreira de sucesso e quase três dezenas de obras executadas, incluindo casas no litoral paulista, em São Paulo e no Rio de Janeiro. A fama trouxe dividendos e, em 1971, Longo comprou um terreno na capital paulista, com duas frentes, próximo à avenida Faria Lima. Na parte voltada para a rua Amauri fez sua casa; para o lado da rua Peruíbe construiu um estúdio. As duas construções eram simétricas e seguiam traçados triangulares.

O clima de festa permanente dominava o térreo, onde o arquiteto recebia os amigos: "Solteiro e morando sozinho, habituou os amigos a aparecerem sem necessidade de convite: diariamente, no happy hour, o local estava cheio", relata Serapião.

A efervescência da vida levou a dúvidas existenciais, e a arquitetura estava prestes a ganhar contornos revolucionários. Nada como uma crise para dar um empurrão nisso. "Quando comecei a fazer muito sucesso e ter tudo sonhado na vida --dinheiro, automóveis, mulheres--, eu tinha também uma angústia de não ser feliz com aquilo; dentro de um ideal hippie, queria me ver livre de muitas das minhas coisas", conta Longo, em depoimento que consta em vídeo exposto recentemente no Museu da Casa Brasileira, durante a 10ª Bienal de Arquitetura.

Assim nascia a mais radical de suas experimentações, contada em detalhes no livro: a permanente metamorfose da própria residência. No mesmo terreno, diversas camadas de intervenções arquitetônicas se somam, sempre mediadas pelos ciclos sociais e psicológicos da vida do arquiteto.

A casa na rua Amauri não apenas representa um momento específico mas também uma síntese do passar do tempo e uma analogia dos costumes da vida urbana das últimas décadas.

Para Serapião, Eduardo Longo passa "a questionar sua relação com o espaço construído e com o consumo" ao ver o entorno da casa se transformar durante os anos 1970 em um grande polo de negócios. Nesse momento, se liberta da serventia aos clientes --demite seus patrões-- e decide apenas fazer reformas, sempre tentando reduzir a área, afinal, segundo suas próprias palavras, "estava tudo construído".

Longo empreende uma busca pelas condições mínimas de vida, nem que essas convicções pudessem frear a ascendência de sua carreira como arquiteto.

METAMORFOSE Entre 1972 e 1974, a casa passou por uma revolução. Primeiro foram as paredes divisórias e os móveis do térreo, totalmente arrancados, dando lugar a uma corredor público, para a rua. Os muros laterais ganharam cores psicodélicas --como saídos de uma viagem de LSD--, que passaram por cima de tudo, inclusive obras de arte ali penduradas, uma delas um desenho de Wesley Duke Lee. Em seguida, pintou com um verde militar todas as superfícies, mesmo a da lataria de seu Porsche 914, rebatizado de "POR QUE?" (assim mesmo, em maiúsculas).

"Havia lá uma atitude de contestação e irritação com todos os valores, inclusive da arte", conta Longo. Até o vaso sanitário deu adeus ao seu lugar no banheiro, sendo substituído por uma fossa.

O arquiteto, a essa altura casado e com dois filhos, se mudou para o mezanino da casa, onde ficou espremido em um exíguo espaço de 42 metros quadrados. Era tempo de epifanias --e a próxima seria redonda. Voltando de uma viagem ao litoral, olha para árvores e vislumbra construções pré-fabricadas em formato de bolas, elevadas do terreno, como as copas sobre os troncos. Para Longo, as casas redondas, acopladas a edifícios verticais, poderiam ser uma solução para a habitação da classe média.

Seria necessário começar por algum lugar, e nada melhor do que a cobertura de sua residência "em processo".

Foi por lá que Longo construiu, entre 1974 e 1979, um protótipo desse tipo de habitação, usando canos metálicos e placas de fibra de vidro. O processo foi documentado, em fotos reproduzidas na publicação. Também todo o interior foi projetado pelo arquiteto, incluindo os móveis --como sofás e cadeiras-- e até a geladeira. Cada canto, ou melhor, cada segmento de curva da Casa Bola foi pensado como um trabalho de desenho industrial, algo impactante para Rem Koolhaas. "Tentei fazer isso em um projeto", dizia o holandês, resmungando durante a visita.

O interior da Bola é bem maior do que sugere sua fachada, quando vista da Faria Lima: tem seis níveis diferentes e três suítes, além de uma espaçosa sala com pé-direito duplo.

Enquanto surgia a moradia redonda no topo, a antiga casa trapezoidal no térreo se transformava em uma galeria que, mais tarde, nos anos 1980 e 1990, abrigaria simultaneamente 13 estabelecimentos comerciais, como restaurantes e lojas.

As metamorfoses da residência não cessaram, e Longo projetou jardins suspensos interconectados na cobertura dos prédios do entorno. Ao adquirir mais um lote vizinho, já na década passada, concretizou a ideia de modo peculiar: no teto de um galpão já presente no terreno plantou flores e construiu um pequeno lago.

ORIGENS Mas afinal, de onde veio essa arquitetura? Serapião encara o difícil desafio de posicionar a obra de Longo na história e entender suas influências. Uma possível referência seriam os chamados arquitetos metabolistas japoneses, que propunham cápsulas industrializadas nos anos 1960. Há semelhança conceitual, mas o arquiteto diz que não os conhecia na época.

O crítico acaba por traçar uma sugestiva relação com a arquitetura da contracultura dos anos 1970 nos EUA e também com o pai de todas as bolas, o norte-americano Buckminster Fuller (1895-1983), que, a partir dos anos 1940, desenvolveu construções esféricas usando estruturas geodésicas.

No fim, porém, fica a impressão de que, por meio de epifanias criativas, processadas em meticulosos desenhos investigativos e postas em prática de forma cuidadosa nos canteiros de obras, Longo é um arquiteto que se fez só, e empiricamente, e que merece inscrever seu nome entre os dos grandes.


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