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Mundo

Convulsões da China

Do império às redes sociais, um país plasmado de rebeliões

CLAUDIA ANTUNES

RESUMO

Lançamentos ajudam a desvendar as características de uma sociedade em ebulição desde os tempos imperiais e permitem entender por que os atuais dirigentes temem o rompimento do pacto proposto por eles em 1989: em troca de crescimento e estabilidade, o monopólio do PC não seria questionado.

"A revolução é um espetáculo de paixão", disse Mao Tse-tung (1893-1976) ao escritor e ex-ministro da Cultura francês André Malraux (1901-76). "Não conquistamos o povo apelando à razão, mas desenvolvendo a esperança, a confiança e a fraternidade."

A definição, diz a historiadora Rebecca Karl, da Universidade Nova York, está ligada a uma das notórias adaptações do marxismo feitas por Mao. Na dita "linha de massa", ele afirmava que a mobilização coletiva poderia superar o atraso econômico na China dos anos 1950, arrasada por um século de invasões estrangeiras, rebeliões e guerra civil entre nacionalistas e comunistas, vencida pelos últimos em 1949.

"Em vez de as forças de produção determinarem as relações de produção, para Mao, nas condições de escassez em que a China se encontrava, as relações sociais é que teriam que determinar o nível das forças de produção", explica Karl em "Mao Zedong and China in the Twentieth-Century World"[Duke University Press, 200 págs., R$ 68,80].

O líder da revolução chinesa usou debates teóricos do tipo para atacar rivais nas disputas de poder no Partido Comunista. Ao lado da polêmica sobre suas intenções, porém, Karl destaca a adesão popular às palavras de ordem da "revolução permanente".

Da Campanha das Cem Flores (1956) à Revolução Cultural (1966-76), milhões responderam a chamados para que se insurgissem contra "revisionistas", burocratas e autoridades. Quando ameaçavam derrubar o Partido Comunista, esses movimentos eram reprimidos e reenquadrados.

simplificações "Mao Zedong and China" é mais um livro de contestação ao best-seller "Mao, a História Desconhecida" [Companhia das Letras, trad. Pedro Maia Soares, 992 págs., R$ 86], de Jung Chang e Jon Halliday, que retratou as convulsões na China do século 20 como fruto das manipulações de um oportunista sádico. Enquanto em "Was Mao Really a Monster?" [Routledge, 200 págs., R$ 104,30] os acadêmicos Gregor Benton e Lin Chun acusam simplificações e imprecisões na obra de Chang e Halliday, Karl é militante: pretende reabilitar a noção de que a política pode mudar a história, que julga sepultada pelo discurso tecnocrático.

"Este livro leva Mao Tse-tung e sua era -em termos chineses e globais- a sério. [] Introduz um momento histórico quando se podia pensar numa transformação global fundamental. É um momento que eu admiro, mesmo sem ter ilusões de que os projetos específicos de Mao sejam apropriados para hoje ou para seu mundo."

Ao descrever a China a partir da revolução republicana que em 1911 derrubou um império de mais de 2.000 anos, a historiadora ajuda a entender por que a cúpula atual do país teme o rompimento do pacto que propôs depois do desbaratamento da última grande onda de manifestações, em 1989: em troca da estabilidade e do crescimento, o monopólio político do PC não seria questionado.

Em seu livro "Sobre a China" [Objetiva, trad. Cássio de Arantes Leite, 576 págs., R$ 54,90], uma ode ao Império do Meio, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger -emissário de Richard Nixon para o reatamento com Pequim nos anos 1970- transcreve o que o dirigente Deng Xiaoping (1904-97) lhe disse sobre a repressão na praça da Paz Celestial: "É muito fácil que o caos surja de um dia para o outro. [...] Se o governo chinês não tivesse tomado medidas firmes em Tiananmen [o nome da praça, em mandarim], haveria guerra civil. E, como a China contém um quinto da população mundial, a instabilidade na China causaria instabilidade no mundo a ponto até de envolver as grandes potências".

O argumento do caos ainda é usado para a censura da internet e a perseguição a artistas de vanguarda, como Ai Weiwei. Mas nem sempre contém transbordamentos como o ocorrido em julho, em reação ao acidente com um trem-bala que matou 40 pessoas. A ebulição nas redes sociais que se seguiu foi uma versão eletrônica dos chamados "incidentes de massa", comuns na China.

Embora os sinólogos afirmem que não se deve superestimar esses protestos, dirigidos na maior parte a autoridades locais, eles são acompanhados com atenção pelo governo e por estrangeiros. Em telegrama de 2009, divulgado pelo site WikiLeaks, o vice-chefe da embaixada dos EUA em Pequim, Robert Goldberg, avaliava que os incidentes não ameaçavam "a estabilidade social", mas indicavam "um descontentamento sob a superfície que vai piorar com o tempo".

Goldberg ouviu de um funcionário chinês que estava preocupado com o aumento do "nacionalismo radical" entre universitários. "Ele disse ter advertido os líderes do partido de que a ameaça estudantil do futuro não virá de ativistas pró-democracia, mas da esquerda antidemocrática, que pode ir às ruas para pedir uma volta ao 'verdadeiro socialismo'", relata o diplomata.

É a esse tipo de advertência que se refere o chinês Wang Hui quanto recusa o rótulo de "nova esquerda" no livro "The End of the Revolution - China and the Limits of Modernity" [WW Norton, 274 págs., R$ 60 ]: "Depois da Revolução Cultural, esquerda virou uma palavra pejorativa, que significa ser simpático à Gangue dos Quatro [liderada pela última mulher de Mao, Jiang Qing, e à qual os desmandos da época foram oficialmente atribuídos]. Nos anos 1990, quando a despolitização, a marquetização e o neoliberalismo vieram a prevalecer, 'nova esquerda' virou um rótulo sujo".

Hoje professor de literatura da Universidade Tsinghua (Pequim), Wang participou do acampamento estudantil na Tiananmen, quando as reformas econômicas iniciadas 11 anos antes se deparavam com alta da inflação, aumento da desigualdade e acusações de corrupção aos dirigentes do PC. Depois, passou um ano desterrado no interior na China e foi professor visitante na Universidade da Califórnia. Na volta, editou a revista de debates "Dushu" até 2007.

VISÃO "TELEOLÓGICA"

" "The End of the Revolution", uma coleção de ensaios, pretende recuperar a herança de 1989. Para Wang, a proposta democrática radical do movimento foi sequestrada por teóricos chineses com uma visão "teleológica" da globalização, na qual o livre mercado é objetivo último da história. "Em nome do repúdio à democracia direta e de se oporem à participação de movimentos sociais de base na política, tentam especificar os métodos indiretos (de elite) como premissa básica da democracia", diz.

Wang tenta, além disso, fazer um encontro de contas entre a história chinesa e a "modernidade" ocidental, que corresponde à formação dos Estados nacionais e do capitalismo, mas também a uma visão "não circular" do tempo, isto é, à ideia de progresso histórico, inexistente na China até seu encontro traumático com o Ocidente.

A crônica do império chinês também está plasmada de rebeliões. No século 19, revoltas como a Taiping (liderada por um cristão convertido) causaram mortandade equivalente à ocorrida sob o maoísmo (estimativas vão de 40 milhões a 70 milhões de mortos, a maioria na fome causada a partir de 1958 pelo Grande Salto Adiante).

Porém, como lembra Kissinger, o objetivo das revoltas no império não era a "derrubada dos valores de toda a sociedade", como propôs Mao, mas a restauração da "sociedade justa e harmoniosa" que, segundo os escritos de Confúcio (551-479 a.C.), existiu em tempos imemoriais: "O imperador era tido como peça-chave da 'Grande Harmonia' de todas as coisas. Se se desviasse do caminho da virtude, () a dinastia seria vista como tendo perdido o 'Mandato Celestial' pela qual possuía o direito de governar". Esse ideário mudou na república. Com a abolição dos exames para a burocracia civil, existentes havia 1.300 anos, reformas acadêmicas seguiram os modelos do Japão, da Europa e dos EUA. "O universalismo europeu se tornou inevitavelmente o elemento dominante nos sistemas educacional e do conhecimento", diz Wang.

As origens do PC remontam ao Movimento 4 de Maio, liderado por intelectuais em 1919. Sob os slogans "democracia" e "ciência", eles acreditavam que o confucionismo enfraquecera a China e defendiam a adoção seletiva do pensamento ocidental.

Porém, nota Kissinger, o próprio Mao pareceu rendido à tradição quando Nixon, certa vez, parabenizou-o por ter transformado uma civilização: "Eu não fui capaz de mudá-la. Só fui capaz de mudar algumas coisas nos arredores de Pequim", retrucou. Seus sucessores reabilitaram o slogan da "sociedade harmoniosa". Na abertura da Olimpíada de Pequim, em 2008, o espetáculo ignorou os momentos de insurreição, passando da antiga "civilização esplêndida" ao presente de segunda potência mundial.

O premiê Wen Jiabao deu o mesmo recado em 2009, nos 50 anos da revolução, quando visitou na Coreia do Norte o túmulo de Mao Anying, filho de Mao que morreu na Guerra da Coreia (1950-53), para a qual Pequim enviou 2,4 milhões de "voluntários do povo". Disse: "Camarada Anying, eu vim visitá-lo em nome dos filhos da pátria. Nosso país está forte agora e seu povo goza de boa fortuna. Você pode descansar em paz".

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