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Vencedores em linha de produção

Como funcionam as casas onde atletas africanos treinam no Brasil

RODOLFO LUCENA

RESUMO

No interior do Paraná e de São Paulo, alojamentos recebem quenianos e outros africanos interessados em participar da São Silvestre e de outras corridas. Os atletas passam meses numa rotina intensa de treinamentos. Do valor que levam em prêmios, 15% vai para os agentes, e o resto vira investimento a longo prazo.

Sem tomar uma gota d'água, sem comer uma fatia de pão, eles se espalham pelo gramado. Alongam o corpo e fazem exercícios de técnica de corrida, como se fosse possível tornar mais elegantes e econômicas as suas passadas. Em minutos, estão todos prontos, alguns ainda com cara de sono. Abrem o portão da confortável casa na pequena Nova Santa Bárbara (PR) e saem pela rua de terra, calçada com pedregulhos irregulares.

É o início de mais um treino de corredores africanos que vêm ao Brasil em busca de experiência em competições internacionais e, principalmente, dinheiro, conquistado em vitórias corrida após corrida, semana após semana.

Eles vêm para a Maratona Internacional de São Paulo, a Meia Maratona Internacional do Rio, a Volta da Pampulha, em Minas, e, em especial, a São Silvestre, a mais importante corrida de rua do país. Alguns chegam com alvo específico: ficam três, quatro dias, correm a prova acertada e voltam para o Quênia, a Etiópia, a Tanzânia. Outros, porém, ficam por dois ou três meses, morando com compatriotas e disputando provas menores, longe dos holofotes, mas sempre com boa premiação em dinheiro.

Vivem em casas montadas especialmente para eles, uma combinação de centro de treinamento e local de convivência. As "casas do Quênia", como ficaram conhecidas, são mantidas por treinadores, que funcionam como empresários dos africanos, descobrindo corridas em que a paga seja vantajosa.

Os agentes dão alojamento e comida, oferecem transporte para as corridas e dão conta de outras necessidades dos atletas, como acesso a médico e dentista. Em troca, recebem 15% dos prêmios, tudo acertado no papel e registrado na federação queniana de atletismo. "Ninguém sai de lá sem contrato e seguro de vida", diz o empresário Moacir Marconi, o Coquinho.

SEMENTE

A casa mais antiga é justo a de Nova Santa Bárbara, montada por Coquinho, ex-maratonista brasileiro de trajetória internacional, dono da assessoria esportiva MMC. A empresa, com as iniciais de seu nome (mais o apelido), também organiza provas e presta serviços de cronometragem.

Mais recente, sua principal concorrente, em Taubaté (SP), também acumula bons resultados. A exemplo da MMC, a equipe Luasa/Quênia é liderada por um ex-atleta, Luiz Antonio dos Santos -que, até o bronze de Vanderlei Cordeiro de Lima, em 2004, era o brasileiro mais bem classificado numa maratona olímpica, com o décimo lugar em Atlanta, em 1996, além de ter conquistado o bronze no Mundial de Gotemburgo, em 1995.

O intercâmbio começou há mais de 15 anos, de forma modesta, pelas mãos de Coquinho (o apelido de infância consagra a voracidade com que se empapuçava com as frutinhas amarelas). Vivendo parte do tempo no Brasil, parte no exterior, onde competia, já tinha granjeado alguma experiência como agente. Em 1986, chegou a montar nos EUA uma "casa do Brasil". Alugou um imóvel na Califórnia e para lá levou três corredores brasileiros, que deveriam ficar uma temporada, competir em algumas provas, ganhar algum dinheiro e garantir a Coquinho uma porcentagem dos prêmios. Não deu certo, mas ficou a semente.

Quase dez anos depois, quando o corredor já se dividia entre Brasil e Europa, onde conhecera atletas da África, acertou com os organizadores da maratona de Curitiba a vinda de um queniano. O acerto funcionou, e ele passou a trazer africanos para maratonas como as de Florianópolis e São Paulo.

"Era sempre bate e volta. O atleta vinha para uma prova, corria e voltava", lembra. A situação começou a mudar depois que conheceu, na Itália, Federico Rosa, um dos principais agentes de maratonistas do mundo -entre seus agenciados, estavam o campeão olímpico Samuel Wanjiru, que morreu em maio passado, e o multicampeão da São Silvestre Paul Tergat. "Ele sugeriu que eu montasse uma casa no Brasil; ele ofereceria os atletas, eu administraria."

Quase na mesma época, surgiu a oportunidade de comprar a casa em Nova Santa Bárbara. Coquinho vendeu o carro e o apartamento onde morava com a família, em Londrina, e iniciou sua "casa do Quênia". No terreno de 1.600 m2 instalou sua própria moradia e a dos quenianos, com quartos separados para homens e mulheres, cozinha, sala de TV e internet e sala de troféus, que também funciona como local para massagens.

Era o ano de 2002 e, por algum tempo, sua base foram os atletas de Federico Rosa -Coquinho ainda traz agenciados do italiano, mas trabalha mais com atletas que ele mesmo descobre no Quênia, onde mantém três apartamentos administrados por corredores, na Tanzânia e na Etiópia, onde tem parcerias com equipes de corrida.

FAMÍLIA

Foram também as amizades que fez como corredor que abriram a Luiz Antonio dos Santos as portas do mundo empresarial. Acompanhando um treino em Paipa, na Colômbia, conheceu atletas quenianos de uma mesma família, que lhe pediram informações sobre o Brasil. Foi o embrião da Luasa/Quênia, que ainda hoje traz para as corridas parentes daquele grupo ou atletas indicados por eles.

O primeiro atleta foi Chemwolo Kiprono Mutai, que ficou em segundo lugar na primeira corrida de 10 km da Volkswagen -perdeu para Marílson Gomes dos Santos, melhor corredor brasileiro de longa distância atualmente. "Mutai chegou em agosto de 2007, ficou três meses e depois retornou ao Quênia. Daí voltou todo ano. Começou a trazer os irmãos. Ele vinha e ajudava os irmãos, porque a pobreza lá é grande", diz Santos.

Campeão da Meia Maratona de São Paulo, vice da Meia do Rio e terceiro colocado na São Silvestre, Mutai morreu em 2009, aos 22, em um acidente de carro no Quênia. Seus parentes continuaram a vir, mesmo antes de Santos montar a "casa do Quênia" em Taubaté.

"Eu não tinha nada. Alugávamos uma casa em Campos do Jordão, comprávamos comida, dividíamos despesas. Não tinha nem carro. Alugava um no fim de semana para as competições, dava uns R$ 500", lembra o dirigente da equipe Luasa/Quênia. Com as conquistas dos quenianos e brasileiros orientados por ele, a situação foi melhorando. Hoje, o centro de treinamento é na Chácara dos Santos, propriedade de 3.000 m2 com campo de futebol, área para treino de força e três casas para os atletas e a administração.

A rotina dos atletas é quase a mesma nas casas de Nova Santa Bárbara e Taubaté. Com Coquinho, há cinco quenianos (duas moças) e um casal da Tanzânia; o último grupo trazido por Santos era de seis quenianos, três homens e três mulheres. Eles acordam cedo, por volta das 6h, e saem para o treino principal, que dura de 45 minutos a duas horas, conforme o dia. Os treinos mais curtos são exercícios em alta velocidade; os mais longos são ritmados, com eles correndo um pouco mais lentamente do que nas provas. No final da tarde, por volta das 17h, há outra sessão, em geral de corrida em ritmo leve.

CHAPATI

A alimentação é tão regrada quanto os treinos. Após a corrida matinal, há o desjejum, que inclui várias porções de chapati (espécie de panqueca sem recheio) e, às vezes, restos do jantar anterior, tudo regado a chá com leite e muito açúcar. O almoço é convencional -arroz, feijão, batata, carne cozida-, mas devorado em enormes quantidades. Ao longo do dia, bebem o chá queniano e, no jantar, preparam a ugali, uma polenta bem consistente e praticamente sem tempero -o sabor vem do molho, feito com couve, repolho e cenoura, tudo bem picadinho.

Depois das refeições, os atletas dormem. Nas horas vagas, navegam na internet e assistem a vídeos de música gospel. Às vezes, arrumam outros passatempos: após um treino numa manhã de novembro, em Taubaté, Ednah Mukwanah, 26, Jacklyne Chemwek, 28, e Nelly Jepkurui, 23, tricotavam círculos com lã amarelo-canário.

As tricoteiras, que planejavam juntar suas peças para montar uma coberta, são feras quando põem os tênis e saem para o asfalto. Jacklyne venceu seis das sete provas que disputara até meados do mês passado, Ednah foi a campeã do Desafio da Paz, que celebrou os seis meses de pacificação do Complexo do Alemão, e Nelly debutou em maratonas com uma vitória na dura prova de Curitiba.

Nelly começou a correr aos 13 anos, na escola, após uma infância em que corria atrás dos animais criados por seus avós na região de Eldoret, onde fica um dos principais centros de treinamento de corredores de longa distância no Quênia. Aos 15, competiu em Bruxelas num mundial juvenil de "cross-country"; também o fez na Itália em provas fora da estrada.

"É a terceira vez que venho ao Brasil. Gosto das pessoas, dos atletas daqui, porque a gente fica junto como uma família. Não dá para dizer quem é queniano, quem é brasileiro", diz ela. Além da sensação de proteção, os atletas festejam a acolhida do público nas corridas. "Os brasileiros batem palmas, gritam: 'Olha o queniano!, Olha o queniano'", entusiasma-se Hillary Kibet, 24, que, na primeira vez no país, já pontua sua fala com muitas palavras em português.

INVESTIMENTO

O que não quer dizer que não sintam saudades. Jonah Kiplagar Kemboi, 23, está em sua primeira viagem internacional. Chegou ao país no último dia 10 de novembro e, pouco mais de uma semana depois, em Nova Santa Bárbara, ia quase às lágrimas ao falar do filho de oito meses que ficou no Quênia.

Logo, porém, ao explicar seus objetivos, volta à serenidade. "Vim ganhar dinheiro. No Brasil, pagam muito bem. Você fica bem quando volta ao Quênia. Não trabalho para o Exército nem para a polícia, como outros corredores. Minha vida é correr, e o dinheiro que ganho eu invisto, tenho casas para alugar. Quando parar, quero poder viver confortavelmente com esses negócios em que estou investindo."

Os prêmios brasileiros, dizem eles, se ombreiam com os da Europa e dos EUA. "Talvez as grandes maratonas, como a de Frankfurt, paguem mais que as grandes provas brasileiras", especula Ednah Mukwana. "Mas lá não há circuitos de corridas como os da Caixa ou do Bradesco, há poucas provas pequenas que pagam bem."

De fato, são muitas corridas, das mais diversas distâncias. A Federação Paulista de Atletismo calcula para este ano 303 corridas no Estado, pouco mais que em 2010. O número de inscrições deve subir de 416 mil para 450 mil corredores.

Só a Maratona de São Paulo distribuiu mais de R$ 150 mil em prêmios; a São Silvestre deve pagar

R$ 35 mil aos vencedores masculino e feminino, totalizando mais de R$ 175 mil até o décimo colocado de cada gênero. Provas menores também oferecem premiação substancial: no início deste mês, Hillary ganhou R$ 5.000 ao vencer, com 16 minutos e 45 segundos, a etapa de Porto Alegre do Circuito de Corrida e Caminhada da Longevidade, que teve provas em 14 cidades. No mesmo dia, seu compatriota Barnabas Kiplagat Kosgei, agenciado por Coquinho, levou os R$ 7.000 da Volta da Pampulha, em Belo Horizonte. Fez a corrida em 53 minutos e oito segundos, três segundos a menos que o segundo colocado, o brasileiro Damião Ancelmo de Souza.

Além da quantidade de provas, da variedade das distâncias e dos prêmios relativamente generosos, o fato de no Brasil ser menor a concorrência de atletas com experiência internacional ajuda a explicar a afluência de corredores estrangeiros de boa qualidade, mas que teriam dificuldades de concorrer com o primeiro time, que disputa corridas ainda mais ricas.

No início de dezembro, o site da Confederação Brasileira de Atletismo listava 70 estrangeiros autorizados a competir no Brasil -alguns portugueses, uma italiana, dois marroquinos; o restante vem do Quênia, da Tanzânia e da Etiópia. "Nos EUA, largam 20 quenianos em cada prova. Na Europa, a mesma coisa. Aqui a concorrência é menor", analisa Coquinho.

Os corredores africanos não ganham sempre. Mas vencem muito e têm resultados cada vez mais impressionantes, em especial em provas de longa distância. Neste ano, as 20 melhores marcas em maratona são de quenianos -o primeiro não africano na lista é o brasileiro Marílson Gomes dos Santos, com o 25º melhor tempo; o segundo é o americano Ryal Hall, mais de 30 postos atrás, conforme ranking da Associação Internacional das Federações de Atletismo, atualizado no último dia 5.

TEORIAS

Essa evidente hegemonia ajuda a reforçar teorias que buscam explicações genéticas para o sucesso dos norte-africanos nas provas de longa distância.

Especialista em medicina esportiva e fisiologia do exercício, Luiz Augusto Riani Costa aponta características que beneficiam quenianos e outros africanos: "As principais são uma composição de fibras musculares que favorece o esforço intenso por longos períodos; a distribuição e a densidade aumentada de glândulas sudoríparas, que ajudam no resfriamento do corpo; a composição óssea, mais leve e cuja organização, com quadris curtos e membros compridos, melhora a eficiência do movimento; o tronco muitas vezes mais curto, como que priorizando o que é necessário para correr e reduzindo o que importa menos nessa tarefa".

Já Yannis Pitsiladis, professor da Universidade de Glasgow que há anos estuda a preponderância de quenianos no atletismo, não está certo de que a genética seja a resposta. "Há várias pesquisas em andamento, mas até agora não há evidências de predisposição genética. Estudos com corredores de longa distância do Quênia e da Etiópia e com velocistas da Jamaica, da Nigéria e dos EUA não detectam nesses atletas perfis particulares. Ao contrário, evidenciam uma grande diversidade genética."

A melhor explicação, segundo Pitsiladis, está em fatores ambientais e comportamentais, como tradição e práticas culturais; razões econômicas, como pobreza e longas distâncias percorridas desde a infância; vantagens geográficas (a altitude das regiões onde vivem e treinam) e anatômicas (morfologia das pernas e peso reduzido).

Os próprios atletas dizem que são bons porque correm desde sempre, seja para escolas distantes até 10 km de suas casas, seja atrás de animais, para ajudar a família a produzir sustento. Em geral, eles vêm de regiões altas. "O fato de algumas tribos viverem em grandes altitudes pode favorecer a produção de hemácias, responsáveis pelo transporte de oxigênio no sangue, o que facilitaria o desempenho em altitude normal, ao permitir maior oferta de oxigênio aos músculos", afirma Riani Costa.

Ele diz, porém, que esse aspecto não deve ser muito relevante: "Muitos atletas passam a treinar em outros locais sem prejuízo no desempenho. Além disso, locais como México e Bolívia também têm pontos altos, mas seus atletas não acompanham os quenianos".

"Não tem segredo, não. É trabalho, meu filho", dispara Luiz Antonio dos Santos. "As meninas ganham porque treinam com homens lá. O negócio é feio. Tudo o que vi lá foi o povo treinando. De sofrer, de chorar num treino", diz.

Assim, vêm prontos para enfrentar dificuldades. Nos dois ou três meses por aqui, chegam a correr dez, 12 provas. O atual grupo na casa de Coquinho, por exemplo, chegou ao Brasil numa sexta no início de novembro e no domingo já estava competindo em uma prova de 10 km no Rio. E vencendo. "Vim para isso. É o meu trabalho", resume Nicholas Kimeli Keter, 25.

Um trabalho que, espera, vai ajudá-lo a tirar a família da pobreza, talvez permitir que se torne empresário quando parar de correr -desejo que compartilha com Ednah, que se vê no futuro como uma mulher de negócios, vendedora de roupas e artigos esportivos.

Nancy, que também começou com vitória sua atual estada no país, quer é que seus herdeiros não enfrentem a dureza que ela passou. "Meu sonho é que meus filhos tenham uma vida melhor por causa da minha corrida, consigam tudo o que as outras crianças têm."

Ela é secundada por Kemboi, que ainda sofre com saudades do bebê que deixou no Quênia: "Eu já corri que chega. Quero que meu filho estude e vá para a universidade. Correr é duro demais."

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