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Peteleco inicial

Pode a ação do homem empurrar o dominó da extinção em massa?

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER

RESUMO Em novo livro, jornalista de ciência da revista "The New Yorker" defende que o planeta vive sexta onda de extinção de espécies, desencadeada pela atividade humana. A teoria, porém, é criticada por autores céticos que, se a consideram cativante, a veem como sensacionalista e favorável ao lobby de grupos ambientalistas.

Para pegar a verdade pelos cornos, Elizabeth Kolbert teve de olhar para trás. Mais precisamente, para o traseiro, de proporções prodigiosas, da rinoceronte Suci.

Ela observa enquanto a diretora do centro de conservação e pesquisa de espécies ameaçadas do zoológico de Cincinnati, nos EUA, sobrepõe duas luvas de plástico no braço direito, além do cotovelo.

A pesquisadora Terri Roth aproveita um momento de distração da paciente. "Então ela enfia seu braço no ânus da rinoceronte", descreve Kolbert no livro "The Sixth Extinction - An Unnatural History" [Henry Holt and Co., R$ 67,50, 336 págs.] (A sexta extinção - uma história não natural), recém-lançado nos EUA e que deve sair em 2015 no Brasil, pela Intrínseca.

Suci pertence à menor e mais antiga das cinco espécies de rinoceronte no planeta, a sumatra. Os genes da Dicerorhinus sumatrensis mantêm-se relativamente inalterados há 20 milhões de anos. E correm o risco, agora, de sumir do mapa para sempre. O que faz de Suci uma garota muito especial --e candidata perfeita para um ultrassom anal. Dias antes, Terri Roth tentara uma inseminação artificial. "O macho elegível mais próximo", afinal, "está há dez mil milhas de distância".

O exame checaria se a rinoceronte estava grávida (não estava) e apta a garantir a sobrevivência de seus iguais (restam poucas centenas de rinocerontes-de-sumatra no mundo). Para Kolbert, até metade das espécies do planeta pode se colocar na pele da rinoceronte.

Jornalista de ciência da revista "The New Yorker", ela ecoa uma teoria que ganha força na comunidade científica: a de que a Terra vive hoje sua sexta grande extinção em massa --o repeteco indesejado de um evento ocorrido pela última vez há 65 milhões de anos, dando cabo dos dinossauros.

Kolbert leu sobre a súbita extinção das rãs-douradas-do-panamá numa revista infantil que comprou para seus filhos. Intrigada, afundou-se por cinco anos numa história bem mais cinzenta, entrevistando dezenas de cientistas, até chegar à conclusão que um quarto dos mamíferos, um quinto dos répteis, um sexto das aves, um terço dos moluscos de água doce e um terço dos tubarões e das arraias "estão a caminho do esquecimento".

CRIANCINHAS Um experimento simples e perturbador pode ajudar a entender o fenômeno das extinções. Pegue uma foto de cem anos atrás --digamos uma imagem de criancinhas brincando na praia. Agora pense como estarão os personagens dessa imagem. Quase certamente mortos, não? A trajetória deste planeta de aproximadamente 4,6 bilhões de anos pode ser vista de forma análoga.

A ascensão e a queda das espécies fazem parte do jogo: é esperado que a cada 700 anos, em média, um mamífero saia da vida para entrar na história.

Já extinções em massa são um "salve-se quem puder", com significativa perda de bioma num tempo geológico curto. Segundo Kolbert, não há um gatilho comum para esses episódios apocalípticos.

Cientistas calculam que a "mãe de todas as extinções" ocorreu há 250 milhões de anos. Uma hipótese para a eliminação de 95% dos animais marinhos e 70% dos vertebrados reproduz a Terra como uma panela de pressão. Vulcões explodindo como pipoca, incêndios florestais em "looping" e oceanos drenados de oxigênio.

Segundo a mais famosa hipótese acerca de um desses "fins de mundos", um asteroide de dez quilômetros de diâmetro caiu onde hoje é o golfo do México, causando impacto equivalente ao de cinco bilhões de bombas atômicas.

Ao longo de anos, raios solares não conseguiram penetrar a nuvem de poeira que se formou, e as temperaturas tornaram-se mortalmente congelantes. Estima-se que tenham sido dizimadas, no cataclismo, cerca de 75% da flora e da fauna de então, inclusive os dinossauros.

Mas quem nos mete numa fria desta vez, afirma Kolbert, é um pirralho de "apenas" 200 mil anos.

Ela desconstrói o discurso de que a espécie humana é mais uma como tantas outras no planeta, o qual já existia muito antes de chegarmos e continuará sem nós.

Para o bem e, sobretudo, para o mal, somos um caso à parte. Agraciado com polegares opositores, o Homo sapiens conquistou muito mais do que a habilidade de manusear ferramentas, pintar a "Mona Lisa" e jogar "Angry Birds" no celular. Ao descobrir reservas subterrâneas de energia, para pôr aviões no céu ou esquentar sua sopa no micro-ondas, a humanidade começou a alterar a composição da atmosfera, o clima e a química dos oceanos.

Deu assim o peteleco num efeito dominó que derrubará de 20% a 50% das espécies numa questão de décadas, séculos ou milênios, "o que é bem de repente, se pensarmos no longo prazo geológico", diz Kolbert à Folha.

David Raup, paleontologista citado por ela, vislumbra a história terrestre como "longos períodos de tédio ocasionalmente interrompidos por pânico". E a premissa do livro dá a entender que nossa era tem credenciais para ser a explosiva exceção à regra.

Exemplos não faltam. O nível dos reservatórios de água de São Paulo nunca esteve tão baixo. No Irã, o lago Urmia secou em poucos anos, e carcaças de barcos são vistas na lama. A coisa pega fogo literalmente, como num incêndio recente em Valparaíso, no Chile.

Enquanto isso, o inverno no hemisfério Norte gera manchetes como a do jornal português "Público": "Até os ursos polares estão a sentir frio nos Estados Unidos".

"As outras espécies estariam melhor sem nós", diz Kolbert no restaurante de um hotel em Nova York, enquanto observa pela vidraça o vaivém em Manhattan.

A jornalista ganhou em 2006 um National Magazine Award na categoria interesse público, por uma série sobre aquecimento global para a "New Yorker". O novo livro mereceu resenha elogiosa de Al Gore, ex-vice-presidente norte-americano e evangelista da luta ecológica, no "New York Times".

BULLYING A autora elege 13 espécies simbólicas, cada qual com seu capítulo, para mostrar o bullying imposto pela humanidade ao planeta.

Nas primeiras partes, escreve sobre seres já extintos. Esteve no Panamá para registrar o sumiço da rã-dourada, há poucas décadas abundante em El Valle --onde o batráquio era tão comum que batiza até hotéis, como o Golden Frog Inn. Vítimas do aquecimento global e de um fungo letal, os anfíbios, cujo primeiro ancestral surgiu há cerca de 400 milhões de anos, têm taxa de extinção 45 mil vezes maior do que a média.

Em outro trecho, Kolbert descreve o crepúsculo dos araus-gigantes --aves desengonçadas que não voavam, parecidas com pinguins. Os dois últimos exemplares de que se tem notícia viraram alvo de caçadores na Islândia, em junho de 1844. Muito lerdos para correr, os bichos acabaram estrangulados; suas carcaças foram vendidas para um colecionador britânico por um preço equivalente a nove libras.

Já numa caverna em Vermont (nordeste dos EUA), Kolbert atravessou carpetes de morcegos em decomposição. "Aquilo foi horrível, mas pelo menos estava muito frio e, por isso, o cheiro não era de todo ruim", conta, fazendo careta.

POR FORA Autor de "Eco-Imperialism - Green Power, Black Death" (Eco-imperialismo, poder verde, morte negra, de 2003), Paul Driessen também torce a cara. Mas para a ideia central de Kolbert, que estaria "totalmente por fora" ao culpar o homem pelas agruras ambientais. "Sugerir que somos o novo asteroide é cativante, cria ansiedade, vende livros e gera doações a grupos ambientalistas", diz.

Essas organizações abocanhariam renda anual de US$ 13,4 bilhões, segundo o analista do Instituto Heartland, definido pela revista "The Economist" como "o mais proeminente think tank' a promover ceticismo sobre o papel do homem na mudança climática".

Bjorn Lomborg, que ganhou a alcunha de "Hitler do clima" por obras como "O Ambientalista Cético" (Campus; esgotado), também acha as previsões de Kolbert hiperbólicas. Ele recorda um relatório encomendado em 1980 pelo então presidente norte-americano, Jimmy Carter. "Disseram-nos que de 15% a 20% de todas as espécies poderiam ser extintas até o ano 2000. Claramente, isso não aconteceu."

Stuart Pimm, professor da Universidade Duke (EUA), considera o livro de Kolbert "bem dramático", mas "essencialmente correto". "Sabemos que dois terços de todos os seres estão em florestas tropicais úmidas e que elas estão sendo derrubadas."

SUPERDOENÇA Kolbert não sabe dizer se, ao serrar o galho em que pousa, o homem põe sua existência em xeque. Poderia uma superdoença, como a que afetou as rãs-douradas-do-panamá, roteirizar o ato final da humanidade?

"Vivemos muito próximos. E você e aquele cara do outro lado da rua têm genéticas similares", diz, enquanto um sujeito com o boné dos Yankees passa por ali. "Fomos de grupos pequenos para grandes populações com rapidez. Não houve tempo para mutações. Somos um bom alvo para algum tipo de vírus. Se você não tem resistência, são altas as chances de ele também não ter."

Não é com seus semelhantes, porém, que Kolbert está preocupada. "Estamos perdendo muitos animais e plantas. Não é um bom momento para não ser humano neste planeta", avalia.

Ela toma cuidado, no entanto, para não soar "anti-humana" ("ei, alguns dos meus melhores amigos são humanos!"). Prefere apostar que nosso tipo é "esperto e criativo" e pode "minimizar seu impacto na Terra, em vez de maximizá-lo".

Kolbert usa a "tragicômica vida sexual" de Kinohi, um corvo havaiano que precisa ser masturbado por humanos para ejacular e assim procriar, como exemplo de quão longe os homens vão para reverter a perda de uma espécie --no final dos anos 2000, sobravam cerca de cem aves da espécie.

A mensagem ambiental, diz, tem se tornado progressivamente mais pop. Lembra que o papa Francisco, após escolher para si o nome do santo protetor dos animais, disse em janeiro: "Deus sempre perdoa; o homem às vezes perdoa; a natureza, quando maltratada, nunca perdoa". Kolbert pausa antes de especular sobre quais espécies seriam "perdoadas" num cenário apocalíptico. "Você apostaria em quem parece se sair bem nas mais adversas condições."

Em quem põe suas fichas? "Ratos: eles se destacam entre nós!"


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