Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Correspondência

As cartas não mentem

A redenção postal do poeta Robert Frost

FRANCISCO QUINTEIRO PIRES

RESUMO

Quatro vezes vencedor do Pulitzer, Robert Frost (1874-1963) tem sua correspondência publicada nos EUA. O primeiro volume, de um total de quatro, reúne cartas escritas entre 1886 e 1920, inéditas em sua maioria, e revela uma imagem mais generosa do poeta, muitas vezes visto como egoísta, misógino e cruel.

-

ESTAMOS em agosto de 1951 e, sob um calor úmido e sufocante, Evangeline Fife visita o poeta americano Robert Frost, a fim de entrevistá-lo. Ao chegar à cabana de Frost em Bread Loaf, uma comunidade de Vermont (nordeste dos EUA), encontra-o sentado no alpendre, mata-moscas no colo.

No centro da aparência flácida e cansada do autor de 77 anos, destaca-se "uma pança de Buda". Sua atitude não se desenha convidativa. "O sr. Frost era um daqueles homens que parecem incapazes de levantar a mão para servir a si mesmos, que dirá aos outros", descreve Fife. Em vez de responder às perguntas, resolve testá-la, numa estratégia para calar a voz da mulher de 31 anos.

De saída, Frost se mostraria preocupado com a calça branca de algodão da entrevistadora. Queria saber se o dia quente fazia a parte traseira da roupa umedecer de suor. Acuada, Fife contra-ataca com uma série de questões sobre a poesia de Frost, tema da edição especial da "Poetry Parnassus", a ser publicada dali a dois meses.

Sob um desconcerto crescente, o poeta justificaria a violência contra os índios nos EUA, que seriam "primitivos", "seres mais perto dos animais do que de nós na escala evolutiva". Para ele, haveria uma única civilização, "a caucasiana".

Os outros poetas seriam, para Frost, "impostores". A essa lista pertenceriam Amy Lowell, Wallace Stevens, Archibald MacLeish. Hart Crane, "efeminado", seria por isso incapaz de estar à altura das exigências poéticas. Couberam a Ezra Pound, porém, as críticas mais contundentes: "um tolo fascista", "um ingrato", "um traidor da poesia". Fife, poeta iniciante, seria a seguinte na lista, sendo expulsa do alpendre após Frost chamá-la de "insignificante".

Nada disso impediria Fife de apontar Frost como responsável por tragédias familiares, como a depressão da mulher, Elinor, o suicídio do filho Carol e a internação da filha Irma num hospício. Poeta mais lido dos EUA, contemplado com quatro Prêmios Pulitzer, Frost seria qualificado pela entrevistadora como um poeta americano que "observa e defende sem dó o que há de pior em nós".

A narrativa desse encontro seria mais um reforço à ideia monstruosa associada à figura de Frost --não fosse pura ficção.

A entrevista é o enredo de um conto da escritora Joyce Carol Oates publicado pela "Harper's Magazine" em novembro do ano passado. Intitulado "Lovely, Dark, Deep", o texto provocou mal-estar.

Familiares de Frost, assim como estudiosos, acusaram Oates de ter criado uma narrativa sensacionalista e detestável. Em antecipação a possíveis ataques, a escritora fez um alerta no fim do texto: "Esta é uma obra ficcional, embora baseada em pesquisa histórica (limitada, seletiva)".

A polêmica ganhou fôlego pela proximidade com o lançamento do primeiro de quatro volumes da correspondência de Frost, cuja publicação deve ser concluída até 2017.

Lançado no início deste ano, o primeiro tomo, "The Letters of Robert Frost (1886-1920)" [Harvard University Press, e-book, R$ 100,06], se propõe a questionar a imagem negativa do poeta, construída principalmente pela biografia escrita por Lawrance Thompson publicada como uma trilogia entre 1966 e 1976.

MITO DO MONSTRO

A obra de Lawrance Thompson fundou "o mito do monstro" ao retratar o poeta como egoísta, misógino e cruel. Até Oates admitiu, em sua conta no Twitter, ser perverso o perfil biográfico feito por Thompson. "O que sabemos da vida de Robert Frost sugere que um demônio veio, de certo modo, habitar um poeta brilhante; ou vice- versa", ela escreveu.

Um dos editores de "The Letters of Robert Frost", Mark Richardson acredita que a biografia de Thompson enfraqueceu, nos últimos 50 anos, a vontade de fazer uma compilação mais abrangente da correspondência do poeta.

Richardson afirma que as centenas de cartas do primeiro volume, escritas de 1886 a 1920, inéditas em sua maioria, desafiam a percepção de Frost como um ser hediondo. "Ao contrário do que se suspeitava, há certa candura na sua personalidade. Ele foi generoso, capaz de manter amizades com pessoas bem diferentes", relata à Folha.

"Quando for lançado no próximo ano, o segundo tomo vai mostrar o poeta como um homem devotado à família, cuja ambição literária foi o centro das suas preocupações, mas não interferiu no desenvolvimento dos seus filhos."

Tratada por críticos e resenhistas como um dos projetos editoriais mais importantes de 2014, a reunião da correspondência de Frost pretende ter um verdadeiro impacto quanto ao registro biográfico do poeta --algo que o lançamento das cartas de outros autores norte-americanos nos últimos anos, segundo Richardson, não conseguiu alcançar.

Na opinião do editor, as missivas de Ernest Hemingway, T.S. Eliot, Robert Lowell, Elizabeth Bishop e Saul Bellow não teriam contribuído para mudar drasticamente o entendimento vigente sobre esses escritores.

Richardson tem receio de que esse tipo de projeto se torne raro, com o uso cada vez mais amplo da internet. A comunicação virtual, por ser instantânea e exigir pouco esforço, "pode ameaçar a qualidade do conteúdo epistolar", e a garantia de sua armazenagem digital ainda seria frágil.

De acordo com o editor, Frost exercitou sua escrita, ainda que em forma de prosa, e exibiu a sua erudição na correspondência. "Em conversas com editores, como John Bartlett e Susan Hayes Ward, e outros poetas, como Amy Lowell e Louis Untermeyer, ele debateu a sua educação poética e revelou as suas ideias literárias iniciais", informa. "O modernismo estava em formação e ele ocupou o centro desse movimento."

JECA

Autor de "Robert Frost - A Life" (1999), uma biografia bem mais empática com a imagem do escritor do que a trilogia de Thompson, o poeta Jay Parini afirma que as cartas criaram a possibilidade de compreender o ponto de vista do escritor sobre as questões culturais e políticas do seu tempo. "A correspondência abala a imagem de jeca", diz ele à Folha.

Nascido em San Francisco (Costa Oeste dos EUA) em 1874, Frost mudou-se aos 11 anos para o Estado de Massachusetts (na Costa Leste do país). De 1912 a 1915, viveu na Inglaterra, onde publicou "A Boy's Will", seu primeiro livro de poesia. Depois, alternou temporadas no campo com a função de professor universitário e a participação em eventos públicos.

Jay Parini recorda que a obra de Frost foi rotulada como "caipira" --os editores de sua correspondência também frisam as críticas aos temas rurais e à linguagem simples na obra do poeta, assentada no contato com a natureza. Na opinião de Parini, porém, Frost é, "antes de tudo, um poeta americano".

Parini diz que Robert Frost não apreciava, por exemplo, T.S. Eliot, que ele considerava "muito europeu, com uma obra pouco representativa da América". "Frost encontrou a sua expressão poética entre os agricultores de New Hampshire, onde criou galinhas na virada do século 19 para o 20. Ali, pôde escutar nas suas vozes um tom original e nativo, que chamava de som do sentido'."

Frost estruturou sua poética de caráter confessional a partir da fala da região da Nova Inglaterra. Para ele, "o local oferecia a arte". Presidente da Poetry Foundation, instituição dedicada à difusão da poesia nos EUA, Robert Polito atribui a esse localismo a capacidade de Frost de ser universal.

"Esse modo de expressão doméstico, rural e cético lançou uma tradição influente até hoje", avalia. "É possível notar a presença de Frost tanto em poetas americanos contemporâneos que fazem acrobacias com elementos da fala quanto em irlandeses como Paul Muldoon e Seamus Heaney."

Polito frisa que as quatro obras com que Robert Frost foi merecedor do Prêmio Pulitzer --"New Hampshire" (1923), "Collected Poems" (1930), "A Further Range" (1937) e "A Witness Tree" (1943)-- guardam essas características.

POEMAS SOLTOS

Os livros de Frost não estão disponíveis em português nas livrarias brasileiras. Embora Marisa Murray tenha traduzido "Poemas Escolhidos de Robert Frost" (Lidador, 1969), essa obra saiu de circulação. Poemas soltos foram compilados em "Antologia da Nova Poesia Norte-Americana" (Civilização Brasileira, tradução de Jorge Wanderley, 1992) e "Poetas Norte-Americanos" (Lidador, tradução de Paulo Vizioli, 1976), ambos com edições esgotadas.

A tradutora brasileira Denise Bottmann define como "imensa falha editorial" a ausência de obras do autor americano em português. "Sob qualquer aspecto que se olhe (integrante de qualquer cânone ocidental, marco cultural americano, referência modernista fundamental), é impressionante que, no Brasil, não só a obra mas o próprio nome de Robert Frost passem batidos", afirma Bottmann à Folha. "Ele é quase um solene desconhecido entre nós."

Com uma poesia que equilibrou tradição formal e coloquialidade, Frost tornou-se popular entre os leitores e políticos do seu país.

Os versos de "The Road not Taken" tornaram-se artigo cotidiano, sendo reproduzidos em ímãs de geladeira, e tema de debate entre as personagens de "Orange Is The New Black", série lançada no serviço sob demanda Netflix em 2013.

A popularidade e a identificação de Frost com certo retrato dos EUA ficaram claras ainda durante a vida do poeta, em duas ocasiões.

Em 1949, o Senado dos EUA celebrou os 75 anos do autor. O texto da homenagem dizia: "Seus poemas têm ajudado a guiar o pensamento, o humor e a sabedoria americanos, promovendo em nossas mentes uma representação confiável de nós mesmos e de todos os homens".

Anos mais tarde, ele se tornaria o primeiro poeta convidado a fazer uma leitura durante a posse de um presidente dos EUA. Na cerimônia em que John Fitzgerald Kennedy subiu ao poder, em 1961, Frost declamou seu "The Gift Outright".

Como Mário de Andrade faria no Brasil, Frost debruçou-se sobre a identidade de seu país. Questionou sua originalidade e indicou a necessidade de romper com as tradições europeias.

Em uma carta dirigida, em 1919, a Louis Untermeyer, ele fala de "The American Language" livro de H.L. Mencken lançado naquele mesmo ano. "Tudo o que podemos fazer é escrever a respeito das coisas que nos ocorreram nos Estados Unidos com a língua sob a qual crescemos nos Estados Unidos", afirma Frost na carta.

Segundo Mark Richardson, o poeta estudou as culturas do continente americano, sobretudo as das civilizações pré-colombianas. Sua preocupação com a singularidade dos Estados Unidos dentro do continente veio à tona quando ele visitou o Brasil, em 1954.

Frost e William Faulkner eram as estrelas representantes da literatura norte-americana no 1º Congresso Internacional de Escritores, realizado em São Paulo. No contexto da Guerra Fria, Frost citou o medo despertado por seu país.

Embora tenha se tornado mais conservador nas duas décadas anteriores à sua morte em 1963, ele enalteceu a importância da luta pela igualdade, da qual dependia, a seu ver, a libertação dos indivíduos sob o jugo do Estado e a opressão das corporações.

"O entusiasmo pela igualdade, pela distribuição de terra, enfim, pela humanidade --esse entusiasmo desapareceu do nosso mundo", ele declarou, em 1954, à plateia do Congresso Internacional de Escritores em São Paulo. "Devemos evitar um perigo imenso que nos ameaça: o grande capitalismo que nunca se lembra de restringir a si mesmo. É necessário que o grande capitalismo permaneça sob observação."


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página