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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Onde estão Waly e Leminski?

São Paulo, 1983

LEÃO SERVA

Todo poeta é um pouco profeta e, como tal, pressente o que vai acontecer depois de seu tempo, concordaram os dois. "O futuro começa por a gente se sentir em casa num mundo eletrônico", disse Waly Salomão há 30 anos, dez antes da internet. Ao seu lado, Paulo Leminski também vislumbrava uma poesia em tela eletrônica. Estávamos em setembro de 1983, e o paranaense disse: "Eu trouxe para São Paulo, agora, o primeiro poema feito para o século 21".

Referia-se a um trabalho concebido com o artista gráfico Julio Plaza para ser exibido em videotexto, um sistema de comunicação inovador na época, que foi atropelado pela web.

Waly e Leminski tinham acabado de lançar seus primeiros livros por uma grande editora. Sentiam levemente o cheiro do sucesso, depois de pelo menos duas décadas de carreira de pouco público, com prestígio entre críticos e intelectuais e parcerias com compositores da música brasileira.

Eu iniciava meu primeiro emprego, na Folha, no caderno "Ilustrada". Reunir os autores de canções como "Vapor Barato" (Waly, com Macalé) e "Verdura" (Leminski), que na voz de Gal e Caetano faziam a trilha sonora de minha geração, era um êxtase.

Havia muito em comum entre eles: a "aventura da poesia concreta", que atravessaram "muitas vezes com a água pelas canelas ou afogados", segundo Waly, a vastidão de suas erudições literárias, a proximidade com a primeira geração do tropicalismo, o gosto pela canção popular. E, acima de tudo, havia os lançamentos de seus livros pela mesma editora, a Brasiliense, que vivia anos luminosos,.

Mas havia também um monte de dificuldades para reuni-los: ambos eram figuras agitadas (hiperativo definiria melhor Waly), com personalidades fortes e grande dose de vaidade. Recém-formado, eu teria que fazer um falar depois do outro, disciplinadamente, para que o diálogo ficasse compreensível, e os pensamentos, claros para o leitor. O desafio era enorme, mas o encontro aconteceu. E foi realmente incrível.

Um tema destacado foi a "economia política" da poesia. Na minha cabeça, era impossível que letristas da música popular não vendessem muitos livros, já que discos com suas letras cantadas na época faziam tanto sucesso. Mas seus escritos vendiam pouco, como ocorria com a poesia no Brasil, e eles refletiam muito sobre isso.

Em grande medida, como diziam, essas limitações do mercado ensinaram os dois a serem promotores de suas vendas, e isso talvez os tenha feito ajudar o jornalista a construir a reportagem.

As brincadeiras tão típicas de Waly deram graça à conversa. Como ao chegar, cumprimentando com ironia um pôster do líder comunista Vladimir Lênin na parede: "A bênção meu pai, que fazer com a doença senil da facção ressentida da cultura brasileira..." A frase fortuita brincava com o nome de dois livros do soviético e iniciava um ataque polêmico aos críticos que, no seu entender, elogiavam poetas contemporâneos mortos, como Torquato Neto, a fim de marginalizar os vivos, inclusos ele e Leminski. Waly era uma metralhadora verbal munida de referências irônicas o tempo todo.

Leminski, de início, parecia tenso. Dada hora disse com todas as letras o que o afligia naquela manhã ensolarada: embora pouco passasse das dez horas, queria beber, e não havia nada na produtora. Fomos até uma lanchonete próxima, localizada no ponto onde fica hoje o badalado bar Pirajá, no cruzamento das avenidas Faria Lima e Pedroso de Morais, em Pinheiros. Depois de tomar duas cervejas rapidamente, ele relaxou, e o papo ficou ainda melhor.

Ao final do encontro com os "poetas-profetas", nenhum deles, e nem mesmo eu, o "foca", previra que as obras completas de Leminski se tornariam um grande fenômeno literário no país dali a 30 anos (pela mesma editora que agora relança a poesia de Waly, a Companhia das Letras).

Menos ainda prevíamos que o destino pudesse ceifar tão cedo a vida de ambos, impedindo-os de fruir integralmente o doce perfume do sucesso. Leminski se foi em 1989, Waly, em 2003.

De meu lado, sigo extasiado pelo encontro. Ouvindo na memória as gargalhadas dos dois, desde aquele dia nunca mais tive dúvidas sobre onde achar Waly.


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