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Três fragmentos de "Zero Zero Zero"

ROBERTO SAVIANO

COCAINA #1

O sujeito sentado agora a seu lado no metrô cheirou para acordar hoje de manhã; ou o motorista do ônibus que te leva pra casa porque quer fazer hora extra sem sentir dor na cervical. As pessoas mais próximas de você cheiram. Se não é seu pai ou sua mãe, se não é seu irmão, então é seu filho. Se não é seu filho, é seu chefe. Ou a secretária dele, que só cheira aos sábados pra se divertir. Se não é seu chefe, é a mulher dele que cheira para ir vivendo. Se não é a mulher, é a amante dele, a quem ele dá pó de presente, em vez de brincos e diamantes. Se não são eles, é o caminhoneiro que faz chegar toneladas de café nos bares da sua cidade e que não conseguiria aguentar todas aquelas horas de estrada sem pó. Se não é ele, é a enfermeira que está trocando o cateter do seu avô, para quem o pó deixa tudo mais leve, até mesmo as noites. Se não é ela, é o pintor que está pintando a sala da casa da sua namorada, que começou por curiosidade e depois se viu contraindo dívidas. Quem cheira está ao seu lado. É o policial que está a ponto de te parar, que cheira faz anos, e agora todos se deram conta e escrevem cartas anônimas que mandam a seus superiores esperando que o suspendam antes que faça alguma besteira. Se não é ele, é o cirurgião que está acordando agora para operar sua tia e que graças ao pó consegue abrir até seis pessoas por dia, ou o advogado que você vai consultar para o seu divórcio. É o juiz que se pronunciará sobre sua causa cível e não considera o pó um vício, só uma ajuda para gozar a vida. É a atendente que está te dando o bilhete de loteria que você espera que possa mudar seu destino. É o marceneiro que está fazendo pra você um móvel que te custou o salário de um mês. Se não é ele que cheira, é o montador que veio à sua casa instalar seu armário comprado na Ikea, que você não seria capaz de montar. Se não é ele, é o síndico do seu prédio que vai te interfonar em alguns minutos. É o eletricista, este mesmo que agora está tentando mudar a tomada do quarto de lugar. Ou o cantor que você ouve para relaxar. O padre, que você foi ver para saber se pode se crismar porque precisa batizar o neto e que fica estupefato por você ainda não ter recebido esse sacramento, cheira. Os garçons que te servirão no casamento de sábado, se não dessem um tiro, não conseguiriam ter nas pernas tanta energia por horas a fio. Se não são eles é o fiscal da prefeitura que acaba de estabelecer novas áreas de pedestre e recebe pó de graça em troca de favores. O manobrista cheira, agora ele só fica alegre assim. O arquiteto que reformou sua casa de veraneio; o carteiro que te entregou uma carta com seu novo cartão de crédito também. Se não ele, a moça do SAC que te responde com voz cristalina e pergunta em que pode ser útil. Aquela alegria, igual em todo telefonema, é efeito do pó branco. Se não ela, o assistente que está sentado agora à direita do professor à espera de te examinar. O pó o deixou nervoso. O fisioterapeuta que está tentando recuperar seu joelho, e ele, ao contrário, fica sociável com pó. O atacante cheira, aquele que marcou um gol arruinando a aposta que poucos minutos antes do fim da partida você estava ganhando. A prostituta que você pega antes de voltar pra casa, quando precisa se desafogar porque não aguenta mais, cheira. Ela usa pó para não ver mais quem está na frente dela, atrás, em cima, embaixo. O garoto de programa, que você se deu de presente para seus cinquenta anos, cheira. Você e ele. O pó dá a ele a sensação de ser o mais macho de todos. O "sparring" com quem você treina no ringue para tentar emagrecer cheira. Se não ele, o instrutor de equitação da sua filha, a psicóloga da sua mulher. O melhor amigo do seu marido, aquele que faz anos te paquera e que nunca te agradou, cheira. Se não ele, o diretor da sua escola. O bedel cheira. O corretor que está fazendo corpo mole justo agora que você conseguiu se liberar para ver o apartamento. Cheira pó o segurança, aquele mesmo que ainda está com o relatório quando todos já arrancam os cabelos por não o terem recebido. Se não ele, o tabelião a cujo escritório você gostaria de não voltar nunca mais, que cheira para não pensar nas pensões devidas às mulheres que deixou. Se não ele, o taxista que xinga o trânsito mas depois fica alegre. Se não ele, o engenheiro que você tem de convidar à sua casa porque quem sabe ele não te ajuda a conseguir uma promoção. O guarda que está te multando e, enquanto fala, sua em bicas, apesar de ser inverno. O lavador de para-brisas de olhos cavos, que só consegue comprar pó com dinheiro emprestado, ou aquele rapaz que enche os carros de folhetos publicitários, cinco de cada vez. O político que te prometeu um alvará de funcionamento, aquele que você enviou ao Parlamento com seus votos e os da sua família, e que está sempre nervoso. O professor que te ferrou num exame, à sua primeira hesitação. Ou o oncologista que você tem consultado, te disseram que é o melhor, e que você espera que possa te salvar. Ele, quando cheira, se sente onipotente. Ou o ginecologista, que se esquece de jogar fora o cigarro antes de entrar na sua casa e examinar sua mulher, que está sentindo as primeiras contrações. Seu cunhado que nunca está alegre, o namorado da sua filha que, ao contrário, sempre está. Se não são eles, então o peixeiro, que arruma lindamente o peixe-espada, ou o frentista que esparrama a gasolina fora do carro. Cheira para se sentir jovem, mas não consegue mais inserir no lugar certo o bico da mangueira. Ou o médico do plano, que você conhece há anos e que te faz passar na frente sem esperar na fila, porque sabe o que você vai lhe dar de presente de Natal. O porteiro do seu edifício cheira, se não ele, a professora que dá aulas de reforço a seus filhos, o professor de piano do seu neto, a camareira da companhia de teatro a que você vai assistir esta noite, o veterinário que trata do seu gato. O prefeito com quem você foi jantar. O construtor da casa em que você mora, o escritor que você lê antes de dormir, a jornalista que você vai ver no telejornal. Mas se, pensando bem, você acha que nenhuma dessas pessoas cheira cocaína, ou você é incapaz de ver, ou está mentindo. Ou, simplesmente, quem cheira é você.

COCAINA #3

Pegue um elástico e comece a esticá-lo. No início quase não há resistência. Você o alonga sem dificuldade. Até alcançar a extensão máxima, quando o elástico arrebenta. A economia de hoje funciona como esse elástico. Ele é como o comportamento segundo as regras de concorrência leal e a lei. No princípio, tudo era fácil, os recursos disponíveis, o mercado pronto para ser invadido por qualquer nova mercadoria capaz de tornar a sua vida mais bonita e mais cômoda. Quando você comprava, sentia ter dado um salto para um futuro melhor. Se você produzia, percebia a mesma dimensão. Rádios. Automóveis. Geladeiras. Lavadoras. Aspiradores. Calçados elegantes e calçados esportivos. Barbeadores elétricos. Peles. Televisores. Viagens. Roupas de grife. Micros portáteis. Celulares. Você não precisava puxar muito o elástico das regras. Hoje estamos próximos do ponto de ruptura. Todo nicho de mercado foi conquistado, toda necessidade, satisfeita. As mãos que seguram o elástico vão sempre mais além, recusam a saturação esticando-o mais um milímetro, na esperança de que esse esforço não seja o último. No limite, você se prepara para transferir sua fábrica para o leste ou tenta trabalhar sem declarar de modo a fugir dos impostos. Procura esticar o elástico o máximo possível. É a dura vida do empreendedor. Apenas um Mark Zuckerberg nasce a cada século. Pouquíssimos podem gerar riqueza apenas a partir de uma ideia; e, por mais vencedora que seja, essa ideia não gera um conjunto sólido de atividades. Os outros são obrigados a uma guerra de posição para colocar bens e serviços que talvez durem o tempo de um bater de asas. Todos os bens são obrigados a se submeter à regra do elástico. Todos menos um. A cocaína. Não existe mercado no mundo mais rentável que o da cocaína. Não existe investimento financeiro no mundo que frutifique como investir em cocaína. Nem mesmo as altas recordes de ações são comparáveis aos "juros" que rende o pó. Em 2012, ano de lançamento do iPhone 5 e do iPad míni, a Apple se tornou a empresa mais capitalizada que já se viu numa lista de ações. As ações da Apple subiram 67% num só ano. Um aumento notável para os números da finança. Se você tivesse investido 1.000 euros em ações da Apple no início de 2012, agora você teria 1.670 euros. Nada mal. Mas se tivesse investido 1.000 euros em cocaína no início de 2012, você teria agora 182 mil euros: cem vezes mais do que investindo na ação recordista do ano!

A cocaína é um bem refúgio. A cocaína é um bem anticíclico. A cocaína é o verdadeiro bem que não teme nem a escassez de recursos nem a inflação dos mercados. Há muitíssimos cantos do mundo que vivem sem hospitais, sem web, sem água corrente. Mas não sem pó. Diz a ONU que em 2009 foram consumidas 21 toneladas de cocaína na África, 14 na Ásia, 2 na Oceania. Mais de 101 toneladas em toda a América Latina e Caribe. Todos querem, todos consomem, todos os que começam a usá-la precisam dela. As despesas são mínimas, colocá-la é imediato, altíssima a margem de lucro. A cocaína se vende mais facilmente do que o ouro, e seus ganhos podem superar os do petróleo. O ouro necessita de mediadores e de tempo para as contratações; o petróleo de poços, refinarias, oleodutos. A cocaína é o último bem que permite a acumulação originária de capitais. Você poderia descobrir uma fonte de petróleo bruto no jardim da sua casa ou herdar uma mina de coltan, columbita-tantalita, que daria para abastecer todos os telefones do mundo, mas não passaria, saindo do zero, às luxuosas vilas da Costa Esmeralda com tanta velocidade quanto através do pó. Da rua ao topo com uma fabriqueta de parafusos? Da miséria à opulência com carros? Um século atrás, sim. Hoje até as grandes multinacionais que produzem bens primários ou os últimos colossos da indústria automobilística não podem fazer mais senão resistir. Reduzir custos, prospectar toda a periferia do planeta para aumentar as exportações, que em todos os setores estão se revelando cada vez menos ampliáveis. Esperar, principalmente, que os balanços positivos façam as ações e debêntures da empresa irem bem, porque é para estas que se deslocou uma parte cada vez mais consistente do ganho.

Não existem papéis cotados em Bolsa capazes de gerar o lucro da cocaína. O investimento menos arriscado, a especulação mais antecipadora, movimentos rapidíssimos de monumentais fluxos de dinheiro, que conseguem influir nas condições de vida de continentes inteiros, não obtêm uma multiplicação de valor nem de longe comparável. Quem aposta na cocaína acumula em poucos anos riquezas que em geral as grandes holdings conseguiram em décadas de investimentos e especulações financeiras. Se um grupo empresarial conseguir pôr as mãos na cocaína, deterá um poder impossível de alcançar com qualquer outro meio. Uma aceleração que nenhum outro motor econômico pode proporcionar. Por isso, onde a cocaína é a economia de escala, não existe nada além do choque feroz e violento. Aqui não há mediação. Ou tudo ou nada. E tudo dura pouco. Não dá para fazer tráfico de cocaína com sindicatos e projetos industriais, com subsídios do Estado e normas impugnáveis pelos tribunais. Você vence se for o mais forte, o mais esperto, o mais organizado, o mais armado. Para qualquer empresa vale a regra de que, quanto mais esticar o elástico, mais você consegue se impor no mercado. Se você conseguir esticar esse elástico ainda um pouco mais com a coca, então poderá vencer em qualquer outro setor. Só a lei pode arrebentar o elástico. Mas mesmo quando a lei descobre a raiz criminosa e tenta extirpá-la é difícil encontrar todas as empresas legais, os investimentos imobiliários e as contas bancárias que foram adquiridos graças à tensão extraordinária obtida pelo pó branco.

A cocaína é um bem complexo. Por trás do seu candor se esconde o trabalho de milhões de pessoas. Nenhuma delas enriquece como as que sabem se colocar no ponto certo da cadeia produtiva. Os Rockefeller da cocaína sabem como nasceu seu produto, passo a passo. Sabem que em junho se semeia e que em agosto se colhe. Sabem que a semeadura deve ser feita com uma semente proveniente de plantas de pelo menos três anos e que as colheitas de coca são feitas três vezes por ano. Sabem que as folhas colhidas devem ser postas para secar até 24 horas depois de cortadas, senão se estragam e não se vendem mais. Sabem que o passo seguinte é cavar dois buracos no terreno. No primeiro, junto com as folhas secas, deve se acrescentar carbonato de potássio e querosene. Sabem que depois é preciso socar bem esse mix até obter uma sopa esverdeada, o carbonato de cocaína, que uma vez filtrado deve ser transferido para o segundo buraco. Sabem que o ingrediente que vem a seguir é o ácido sulfúrico concentrado. Sabem que o que se obtém assim é o sulfato básico de cocaína, a pasta básica, que é posta para secar. Sabem que os últimos passos comportam acetona, ácido clorídrico, álcool absoluto. Sabem que é preciso filtrar novamente. E pôr de novo para secar. Sabem que se obtém o cloridrato de cocaína, comumente chamado de cocaína. Sabem, os Rockefeller do pó, que para obter mais ou menos meio quilo de cocaína puríssima são necessários: 300 quilos de folhas e um punhado de operários em tempo integral. Tudo isso os empresários da cocaína sabem, como qualquer gerente de empresa. Mas sabem principalmente que a massa de camponeses, passadores e transportadores que arranjaram um trabalho um pouco mais rentável do que podem tentar conseguir em outro ramo continua a ter os dois pés enterrados na miséria. É a mão de obra, uma maré de serviçais intercambiáveis na perpetuação de um sistema de exploração e enriquecimento em benefício de poucos. E acima desses poucos estão os que tiveram a clarividência de compreender que, na longa viagem da coca, das folhas colombianas aos narizes do consumidor ocasional, o verdadeiro dinheiro se faz com a venda, a revenda e a gestão dos preços. Porque, se é verdade que um quilo de cocaína na Colômbia é vendido a 1.500 dólares, no México é vendido a entre 12 mil e 16 mil, nos Estados Unidos a 27 mil, na Espanha a 46 mil, na Holanda a 47 mil, na Itália a 57 mil e no Reino Unido a 77 mil; se é verdade que os preços por grama vão de 61 dólares em Portugal a 166 dólares em Luxemburgo, passando por 80 dólares na França, 87 na Alemanha, 96 na Suíça e 97 na Irlanda; se é verdade que de um quilo de cocaína pura se tira em média, com a mistura, três quilos que serão vendidos em doses de 1 grama; se tudo isso é verdade, também é verdade que quem comanda a cadeia inteira é um dos homens mais ricos do mundo.

Novas burguesias mafiosas gerenciam hoje o tráfico de cocaína. Através da distribuição conquistam o território onde é comercializada. Um "war game" de dimensões planetárias. De um lado, os territórios de produção que se tornam feudos onde não cresce mais nada além de pobreza e violência, territórios que os grupos mafiosos mantêm sob controle, distribuindo esmolas e caridade que fazem passar por direitos. Não pode haver desenvolvimento. Só prebendas. Se alguém quer se emancipar, não deve clamar por direitos, mas buscar a riqueza. Uma riqueza que deve saber conquistar. Desse modo se perpetua um único modelo de afirmação, do qual a violência é tão só o veículo e o instrumento. O que se impõe é poder produzido e contido em pureza, como a própria cocaína. De outro lado, países e nações onde se possam fincar, bem no centro do mapa, suas bandeiras. Itália: presente. Inglaterra: presente. Rússia: presente. China: presente. Em toda parte. Para as famílias mais fortes, o pó funciona com a facilidade de um caixa eletrônico. Tem um shopping center à venda? Você importa a cocaína e um mês depois tem o dinheiro para concluir a transação. A cocaína é a resposta universal para a necessidade de liquidez. A economia do pó cresce desmesuradamente e chega a toda parte.

CALDEIRÃO DO DIABO

Os mais de 200 milhões de brasileiros moram em um país que, na geopolítica do pó, parece uma voragem. A sua posição privilegiada o torna um ponto de trânsito perfeito para a cocaína. Segundo o International Narcotics Control Board, cerca de 25% das 200-300 toneladas de cocaína consumidas anualmente na Europa passam pela África e pelo Brasil. Uma nação que tem fronteiras com os três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia) e que, por causa da crescente repressão na Colômbia, se tornou um ponto de partida alternativo e mais seguro para os carregamentos de cocaína destinados à Europa. Mas, nos últimos anos, junto com a economia brasileira e os salários da classe média emergente, o consumo de cocaína também aumentou, levando o país para o segundo lugar no ranking dos maiores consumidores da droga no mundo, atrás dos Estados Unidos, que detêm o primeiro lugar.

A cocaína chega ao Brasil vinda do oeste, do noroeste e do sudoeste. Vem da Colômbia, do Peru e sobretudo da Bolívia através do Paraguai. E, no final, envereda pela porta de saída a leste. É tratada, embalada e enviada. Transportada pelos meios mais disparatados: dos mais clássicos, como navios porta-contêineres e aviões comerciais, aos mais futuristas, como os narcossubmarinos, obras-primas de engenharia que requerem know-how e dinheiro, muito dinheiro. Mas isso não falta aos traficantes. Cinco milhões de dólares é o montante que o clã chefiado pelo goiano Mário Sérgio Machado Nunes --30 anos de experiência no setor e um mandado de prisão da Interpol por tráfico de drogas-- havia antecipado ao colombiano Henry de Jesús López Londoño, vulgo Mi Sangre, chefão dos poderosos Urabeños, para a construção de um sofisticado submarino para transportar drogas até o outro lado do Oceano Atlântico. Tudo fora planejado nos mínimos detalhes: alguns engenheiros colombianos seriam enviados à planta de uma mineradora africana, onde aconteceria a construção do navio. Embora o grupo já tivesse começado a buscar as peças a serem montadas, o projeto acabou não sendo realizado. Culpa, talvez, da prisão repentina de Mi Sangre, que aconteceu em outubro de 2012 perto de Buenos Aires. Machado Nunes nunca mais viu os 5 milhões de dólares que havia dado como adiantamento nem o submarino encomendado. Riscos do ofício, desprezíveis, no final das contas, para uma organização que, segundo as investigações da Polícia Federal, faturava mais de 5 milhões de reais por semana e havia acumulado um patrimônio de 100 milhões de reais em hotéis, mansões, terrenos, casas de praia e fazendas. Tudo graças à cocaína, que era comprada no Peru, Colômbia, Bolívia e Paraguai e distribuída em mais de 30 países estrangeiros --dos Estados Unidos à Holanda, da Espanha aos Emirados Árabes, da Itália à China-- com o auxílio dos homens que conseguiram corromper em portos, aeroportos, alfândegas e polícias. Era tanta cocaína a ser transportada que, além do submarino, a organização também planejara comprar um Boeing 737, primeiro passo rumo ao objetivo final: fundar uma empresa aérea de fachada, especializada em voos internacionais, a fim de transportar a droga do Brasil para vários continentes sem levantar suspeitas. Em maio de 2014, uma operação da Polícia Federal brasileira, chamada Águas Profundas, pôs fim a esses ambiciosos projetos.

Mas, a cada ano, cerca de metade das 80 a 110 toneladas da droga que transitam pelo Brasil ficam dentro das suas fronteiras para satisfazer um exército de 2,8 milhões consumidores de cocaína e derivados. Escolhendo um deles ao acaso, poderíamos encontrar um mendigo das favelas ou um novo-rico de terno e gravata que trabalha no 40º andar de um arranha-céu de São Paulo. Os cheiradores no Brasil não têm um rosto só, mas têm uma idade que está diminuindo inexoravelmente. Um alvo mais jovem significa ter de lidar com uma geração perdida e com as estratégias de marketing dos narcotraficantes, estudadas "ad hoc", como os papelotes de cocaína vendidos com a foto de Amy Winehouse, que se tornou um mito entre a garotada devido aos seus excessos e à sua vida desregrada, ou como os números de telefone dedicados à entrega da droga em domicílio. Você liga para um número, escolhe a droga e a quantidade e recebe a mercadoria comodamente em casa, como se fosse uma pizza ou um sushi. Pó delivery.

País de trânsito e país de consumo. Mas, se você é um dos dez maiores produtores de substâncias químicas do mundo e não tem concorrentes nesse campo na América Latina, então pode dar a sua opinião também sobre a produção de cocaína. Você exporta acetona, querosene, permanganato de potássio e anidrido acético aos seus primos colombianos, peruanos e bolivianos (esses últimos especialmente afeiçoados ao limítrofe Brasil, já que não possuem saída para o mar), todos elementos fundamentais ao processo de refino da coca. Um país com três dimensões, que aproveita quase toda a longuíssima cadeia de montagem da cocaína e que internamente é dilacerado por uma guerra sem fim entre os grupos criminosos que disputam os territórios do tráfico.

Nota: este texto é um trecho do capítulo homônimo de "Zero Zero Zero" (Companhia das Letras).


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